Nome referencial entre os grandes pianistas do passado
Crê-se que Kempff desempenhe um papel,
quando, ao contrário, ele se abandona.
Onde outros denunciam maneirismo,
vejo esplêndido equilíbrio,
plenitude viril, sinceridade exigente
que recusa que lhe coloquem uma máscara
sobre o rosto para controlar friamente seus reflexos.
Bernard Gavoty
(“Wilhelm Kempff”– Les Grands Interprètes)
O blog havia sido publicado na madrugada de sábado, como sempre, e pela manhã encontro Marcelo na feira livre. Ouviu na íntegra o recital de Arthur Rubinstein e ficou maravilhado. A certa altura, indagou: “Ele existiu mesmo?” Trocamos rápida conversa e, ao se despedir, meu amigo sugere: “Dá para você escrever sobre outro ‘monstro’ do piano?” Regressei para casa a pensar.
Paulatinamente deverei escrever posts sobre esses incríveis intérpretes do passado. Poderia transparecer saudosismo nesses meus 81 anos. Tendo o privilégio de ter ouvido inúmeros excepcionais pianistas desde minha juventude, ao vivo e através de gravações, na época os LPs, posteriormente os CDs e a profusão de inserções futuras em aplicativos como o YouTube, mais acentuadamente entendo haver uma distinção nítida entre aquelas interpretações de um passado remoto e as atuais. Aquelas primavam pela leitura a buscar a essência da mensagem do compositor, nela entendendo-se a poesia inerente, a flexibilidade plena do discurso musical sem pirotecnia, quase sempre de maneira natural. Não havia a concorrência acirrada da atualidade a visar à performance a mais perfeita, veloz, impactante, caso específico do aperfeiçoamento técnico pianístico, mormente na escola chinesa, a conduzir a interpretação a níveis bem próximos às atividades esportivas que culminam nas Olimpíadas. Recordes esportivos têm de ser batidos, assim como os do virtuosismo pianístico. Não mencionei nesse espaço que o Diretor do Conservatório de Pequim teria dito a jornalista francês que dentro de pouco tempo nenhum pianista ocidental terá a velocidade de um colega chinês? Ouvindo essas excepcionais execuções sob o aspecto técnico, de destreza, de apetite pela virtuosidade, verifica-se que o Diretor em questão tem lá suas razões. Como não mencionou músicos na acepção, pergunta-se, e a mensagem musical em sua essencialidade? Perdurará esta frente à civilização que busca o espetáculo à maneira de uma arena esportiva? Esse tema tem sido recorrente em meus blogs, mas é sempre importante a ele retornar.
Lendo biografias e relatos de grandes intérpretes do passado, apreende-se que o amadurecimento se dava naturalmente, sem açodamento, sem traumas. “Cette Note Grave – Les années d’apprentissage d’un musicien” (Plon, Paris, 1955), do extraordinário pianista Wilhelm Kempff, traduz esse caminhar inicial, que resultaria em um dos mais sensíveis executantes de todos os tempos. Li-o nos meus anos de estudos em Paris e fundamentos do livro serviram-me para reflexões que perduram. Já o mencionei em blogs bem anteriores.
Ao longo das últimas décadas converso por vezes com jovens pianistas. Fico surpreendido pelo desinteresse por determinados aspectos essenciais de uma composição em fase de “acabamento” ou mesmo apresentada ao público. O conteúdo essencial passa tantas vezes ao largo, preocupando-se o jovem com a performance pianística como fim, mormente se ela tiver forte carga de virtuosidade. Há sempre recordes a serem batidos. Não é só em termos pátrios, mas alhures também esse fenômeno ocorre.
Nessas investidas durante noite adentro, ouvi Wilhelm Kempff, pianista alemão singular, mas cujo perfil personifica o intérprete do período, guardando-se as características individuais de cada executante. Refiro-me aos approaches desses pianistas e de seus entendimentos frente à carreira e ao público. Logicamente, a ser observada a transformação do gosto musical motivada por tantos cambiantes caminhos da modernidade. Também assisti às suas apresentações durante minha juventude, não apenas em São Paulo, como anos após em Paris. Foi um desses “monstros sagrados” da interpretação. Estou a me lembrar de que o primeiro contato com suas interpretações veio de LPs ouvidos na minha adolescência, entre os quais aqueles em que executa Beethoven, Schubert e Liszt. Encantava-me a poesia inerente de suas apreensões da partitura. Em Paris assisti a um seu recital Schubert, retido até hoje em minhas memórias preferidas.
Qual intérprete hoje escreveria Cette Note Grave, a ter a música não como fim para a promoção individual, mas secretamente guardada no de profundis que, ao se exteriorizar, vem plena dessa essência subjetiva, a traduzir a mensagem sonora sublimada? Nesse belo livro, Kempff desvela seus primeiros anos a caminho da juventude. A música como razão essencial, a meditação sobre as criações, o órgão como instrumento praticado, principalmente nas criações de J.S.Bach nesse período de formação, moldando sua visão das partituras de tantos outros compositores a seguir. Indelével seu encontro com o grande músico, pianista e compositor Ferrucio Busoni, que o influenciaria durante a existência.
Bernard Gavoty, autor de Wilhelm Kempff (Genève-Monaco, René Kister, 1954), traça com precisão o perfil do pianista. Expressão exata do que o jovem que eu fui sentiu ao ouvi-lo algumas vezes: “Este artista ao qual fazem ressalvas por externar seus sentimentos – quando razão há para tanto! – se o leitor o conhecesse um pouco saberia que não há um homem mais introspectivo nem mais voltado ao interior da música. Nenhum mais sincero. Um músico doublé de filósofo. Ouço sua voz, ela ressoa em meus ouvidos numa pequena sala de hotel. Kempff busca as palavras, suavemente: ‘Viver música para mim foi sempre sede, fome… As vezes esqueço destas ao tocar piano… É minha segunda natureza… Só toco a música que amo, aquela que está dentro de mim, que sinto pulsar como o sangue no meu peito. A musica que amo é meu coração…’ Malgrado todos os refinamentos, a mensagem de Kempff é uma mensagem de saúde, de luz e de alegria”.
O repertório de Wilhelm Kempff, um dos mais extensos entre os pianistas, abrangeu criações de J.SBach, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt… Kempff gravou todas as Sonatas de Schubert e de Beethoven, deste mais de uma vez, inclusive também seus Concertos para piano e orquestra. Ouvir Wilhelm Kempff é captar mensagens de um dos mais poéticos intérpretes da história do piano. Há atmosfera do sagrado, mormente nas composições mais contemplativas.
Clique para ouvir ao vivo o terceiro andamento da Sonata op. 27 nº 2, conhecida como “Sonata ao Luar”, na interpretação de Wilhem Kempff:
https://www.youtube.com/watch?v=oqSulR9Fymg
Wilhelm Kempff também se dedicaria à composição, escrevendo para vários gêneros. Assim como Franz Liszt, Ferrucio Busoni, Alexandre Siloti, Dame Myra Hess e outros, transcreveu para piano criações de J.S.Bach.
Clique para ouvir de J.S.Bach-Kempff, em transcrição para piano, o coral Awake, the Voice is Sounding, na interpretação de JEM (gravado na Capela Saint-Hilarius em Mullem, 2005):
https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s
Creio ter atendido ao amigo Marcelo. Por vezes dedicarei blogs a esses intérpretes do passado que não podem ser esquecidos jamais, pelo legado aos pósteros através de gravações memoráveis.
This post is about the German pianist and composer Wilhelm Kempff (1895-1991), one of the most poetic interpreters in the history of music. Unlike most modern pianists, he did not see music as a route to individual promotion; on the contrary, his pianism was introspective and unaffected, avoiding display of technique for technique’s sake. Kempff sought the essence of the composer’s message, here understood as its inherent poetry, the flexibility of the musical language without pyrotechnics and fast playing. A pianist who will not be forgotten thanks to his legacy of memorable recordings.