Quando um acontecimento permanece ao longo da existência

A virtuosidade é enobrecida, ou melhor, desaparece,
para não ser senão música,
o que significa uma virtuosidade superior.
Yvonne Lefébure (1898-1986)
(depoimento sobre Alfred Cortot)

Ele tocava Schumann como ninguém,
absolutamente divino.

Vladimir Horowitz

Consagrado no mundo inteiro, reverenciado por suas interpretações personalíssimas dos românticos, mormente Chopin, Schumann e Liszt, assim como dos franceses Fauré, Debussy e Ravel, Alfred Cortot, quando em viagem ao Brasil no início dos anos 1950, despertou interesse inusitado. Naqueles tempos do pós-guerra, os grandes mestres que nos visitavam já haviam transposto a sétima década. Para nossa geração, Alfred Cortot era uma dessas lendas que prosseguiam a encantar um público já habituado a ouvir os denominados “monstros sagrados”. O notável pianista franco-suiço nasceu em Nyon na Suiça.

O ilustre pianista quando em São Paulo para recital, ouviu-nos antes de seu ensaio, mercê da intercessão do Presidente da Comunidade Francesa do Rio de Janeiro, Monsieur Yves Mainguy, amigo de meu pai. Foi em uma manhã. Tínhamos, João Carlos e eu, 11 e 13 anos, respectivamente. Quis ouvir-nos interpretar duas obras cada um. Ao final, apenas uma despedida formal e voltamos à rotina de estudos. Dias após, Monsieur Mainguy recebeu carta do insigne pianista datada de 12 de Fevereiro de 1952, reenviando-a ao meu pai. Na adolescência as dúvidas quanto ao futuro são muitas, a não ser que fato singular, aliado à vocação imperiosa, torne-se guia pela vida. Sempre que períodos de incertezas durante a juventude surgiam, a carta de Alfred Cortot era-me um farol a indicar o destino. Um parágrafo do notável músico me foi decisivo: “Malgrado minha repugnância, ou talvez malgrado meus escrúpulos em envolver os pais para que dois jovens membros de uma mesma família abracem uma carreira da qual conheço todas as dificuldades atuais, fiquei muito impressionado com os dons evidentes dos dois jovens pianistas, estimulando M. e Mme da Silva Martins a fazê-los prosseguir seus estudos em Paris, no momento que julgarem oportuno”. Guardo o manuscrito autógrafo como relíquia preciosa. Após láurea no Iº Concurso Nacional da Bahia (1958) e consequente bolsa do governo francês, permaneci anos em Paris prosseguindo estudos.

Apesar de adolescente, lembro-me de seu recital em São Paulo e ficou-me na memória a sonoridade inefável que extraía do piano do Cultura Artística. Nenhum malabarismo, nenhum excesso, tampouco gestual. E tudo lá estava. Décadas distantes da atual civilização do espetáculo.

Suas gravações, em LPs que ouvíamos à exaustão, traduziam flexibilidade singular da frase musical. Harold Shonberg sintetiza dados concernentes à interpretação de Cortot, comentando não apenas as qualidades (“The Great pianists”, 1963): “Cortot cometia erros e por vezes tinha falhas de memória, problemas para um pianista de menor envergadura. Em relação a Cortot, essas falhas não tinham importância. O público as aceitava como se aceitam cicatrizes ou defeitos de um quadro de um dos antigos mestres da pintura. Pois, apesar desses equívocos, era óbvio que Cortot possuía uma grande técnica e era capaz de qualquer tipo de fogo de artifício quando a música assim o exigia, como se torna evidente na fabulosa gravação da Rapsódia Húngara nº 11, de Liszt. Como artista interpretativo, foi uma das mentes mais capazes de sua época. Em sua execução havia a combinação de autoridade intelectual, aristocracia, virilidade e poesia”.

Clique para ouvir a gravação, datada de 1925, da Rapsódia nº 11, de Liszt, na interpretação de Alfred Cortot:

https://www.youtube.com/watch?v=TSDhxxB_IyQ

Um grande mestre do piano, mas também excelso professor, conferencista, regente, camerista e literato com inúmeras obras sobre música. Suas edições de trabalho de inúmeras composições do período romântico são extraordinárias, pois penetram no universo poético e imaginário tantas vezes insondável para o intérprete.

Nesse aspecto, tão fulcral para o entendimento de uma partitura sob todos os ângulos possíveis, se a edição URTEXT, fundamental para que a leitura de uma partitura não transgrida o que está proposto pelo compositor, a edição comentada por mestres das dimensões de Alfred Cortot (Chopin, Schumann, Liszt), Arthur Schnabel (Sonatas de Beethoven), Ferrucio Busoni (J.S.Bach), como exemplos, recria a essência criativa, imaginária, espiritual, poética e, mesmo que por vezes o pensamento do revisor-editor estabeleça contornos outros no sentido de impedir uma execução apenas linear, essa percepção extramusical estimula o voo sereno e seguro da execução. Quantas gerações não sorveram essas “viagens” desses grandes mestres? As obras comentadas por esses três luminares do piano foram e continuam faróis sempre revisitados. Como não apreender a mensagem de Cortot ao passar a uma aluna sua visão de O poeta fala, última das peças das Cenas Infantis, de Schumann?

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=aWr36hIgIuU

Chopin foi um de seus eleitos e suas gravações, mesmo as quase centenárias, são ainda hoje referências. Clique para ouvir a Fantaisie Impromptu op. 66 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=7Chn0qYtpkM

Nos diálogos com o crítico musical de Le Figaro, Bernard Gavoty (“Alfred Cortot – Les Grands Interprètes”, texto de Bernard Gavoty. Genève-Monaco, René Kister, 1953), o entrevistador colhe determinadas frases incisivas do pianista. Perguntado sobre seus mestres, revela-os, mas ressalta dois momentos decisivos. Ao tocar, nos seus 15 anos, a Sonata Appassionata, de Beethoven, para o grande pianista russo Anton Rubinstein (1830-1894), mercê da intercessão de seu mestre Louis Diémer (1843-1919), recebe daquele a seguinte observação: “Beethoven não se toca, reinventa-se”. Cortot diz a Gavoty que a frase o salvara para toda a vida. Gavoty insiste: “Rubinstein o liberava de um escrúpulo?”, ouvindo de Cortot: “Em presença de uma obra-prima, há duas atitudes: respeito ou violação. Tocar segundo o desejo do autor, ou na tradição de seus alunos, o que isso significa? O que é necessário é dar curso à imaginação, recriar, fazer reviver a obra. Interpretar é isso…”. Uma segunda frase jamais esquecida pelo pianista. Dias após a morte de Claude Debussy, a viúva Emma convida Cortot para lhe tocar os Préludes de seu marido. A filha do casal ouviu atentamente e, ao final, Cortot pergunta à Chouchou (Claude-Emma) se era assim que seu pai tocava, recebendo como resposta da menina: “Oh! Não, papai escutava preferencialmente”. O pianista, intérprete das obras de Debussy e seu amigo, lembrar-se-ia de frase do compositor “… as lições do vento que passa e nos conta a história do mundo…” Uma jocosa resposta a Bernard Gavoty revela que, apesar de ter sido pianista excelso, tem certo “desprezo” pelos apenas virtuoses: “Não me fale dos virtuoses! São muitos – e tão pouca coisa… Fazem-me pensar nos galos…Os infelizes acreditam que basta um cocorico para que surja o sol”.

Bernard Gavoty entrevistou Alfred Cortot em 1953. Uma sua opinião, passados quase setenta anos, soa perene: “Maneira única de interrogar o teclado, de emocionar um aparelho composto de cordas e martelos, destinado pois à secura, esse dom de fazer cantar aquilo que deve soar, esse arco invisível, esses traços multicoloridos, esses acordes de veludo, essa neve em flocos… – o milagre de Cortot é que o piano cessa de ser piano!” Como camerista integrou um dos mais importantes trios da história: Alfred Cortot (piano), Jacques Thibault (violino) e Pablo Casals (violoncelo).

 

Em 1952, Alfred Cortot, após tournée pelo Japão, recebeu da imperatriz uma ilha de presente, Cortoshima. O ilustre agraciado soube do significado em japonês: “Solitário na ilha dos sonhos”.

In this post I write about the Franco-Swiss pianist Alfred Cortot (1877-1962), world-renowned for his very personal interpretation of Romantic composers such as Chopin, Schumann and Liszt, as well as the French Fauré, Debussy and Ravel. His visit to Brazil in the early fifties stirred vivid interest. On that occasion, my brother and I, then 11 and 13, had a chance to play for him, who wrote an encouraging letter shortly afterwards. Pianist, chamber music player, conductor, teacher and writer of valuable books on musical interpretation, Cortot knew how to extract unusual sonorities of his instrument without unnecessary gestures and grimaces, a kind of piano playing that is disappearing. In spite of memory lapses and clinkers in later years, he was one of the most celebrated classical musicians of the 20th century. To date his Chopin recordings are considered essential. I have kept his handwritten letter as a precious relic, a beacon showing me the way in moments of doubt.