Tradição preservada em solo da antiga União Soviética

A arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual,
que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
Miguel Real

Se em anos anteriores esporadicamente publicava blogs a lembrar respeitados pianistas, casos específicos de Marcelle Meyer, Jean Doyen, Vianna da Motta, Sequeira Costa, foi a  insistência de leitores, a estimular uma sequência consagrada aos intérpretes de antanho, que me levou a pormenorizar luminares da arte pianística, muitos deles, infelizmente, pouco cultuados nessa acelerada civilização do espetáculo. Em Março último recebi dois e-mails sugerindo a inclusão do pianista russo Emil Gilels. Os amigos Philip Yang e Magnus Bardela estão entre os incontáveis admiradores do notável intérprete.

Os primeiros decênios do século XX viram nascer alguns dos mais ilustres pianistas russos: Vladimir Sofronitsky (1901-1961), Vladimir Horowitz (1903-1989), Sviatoslav Richter (1915-1997), Emil Gilels (1916-1985), Tatiana Nikolayeva (1924-1993) e outros nomes referenciais. Seria, contudo, após a segunda grande guerra que o Ocidente passou a conhecer publicamente esses artistas, exceção a Vladimir Horowitz que, ainda na juventude da idade madura, foi morar no Estados Unidos, mantendo contudo forte vínculo com o repertório russo, do qual foi um dos maiores intérpretes na história.

Estudava em Paris nas fronteiras dos anos 1950-1960 quando a Europa Ocidental, os Estados Unidos e Japão já estavam sendo “visitados” há poucos anos por alguns dos ilustres pianistas e violinistas russos. Estou a me lembrar do efeito que causaram Emil Gilels e Sviatoslav Richter (1915-1997). Tratava-se do choque entre duas escolas pianísticas, a francesa e a russa. Diria que esta última trazia uma abordagem, mormente dos românticos, totalizante. O apanágio francês da clareza absoluta e de um toque fluente nítido e tantas vezes não tão aprofundado no legato era confrontado com uma maneira que em muitas obras apresentava-se rigorosamente inusitada. Quantas e quantas não foram as oportunidades de diálogo com colegas e mestres sobre essas abordagens. Esse totalizante compreendia desde a condução da frase musical em seus extremos da dinâmica, sem qualquer agressividade; legato perfeito, distante do consagrado toque perlé francês; digitação diferenciada.

Como curiosidade, colegas franceses, naquele período em que as imagens eram raras, asseveravam que Gilels tinha os dedos das mãos – exceção clara aos polegares – do mesmo comprimento. Um deles foi enfático. Essa hipótese era levantada devido à digitação singular do pianista. Jovem ainda, ao concorrer no IIº Concurso Internacional Tchaikovsky em Moscou, em 1962, estava à porta do Conservatório Tchaikovsky, quando vi Emil Gilels chegar à Instituição em uma bela Mercedes verde. O pianista integrava o júri.  Como passou por mim que, como outros candidatos, ostentava o distintivo do concurso,  respeitosamente me apresentei como concorrente  e perguntei-lhe se poderia me mostrar seus dedos. Sorriu discretamente e esticou-os. Disse-lhe o porquê da pergunta. Voltou a sorrir e notei que eles eram “quase” do mesmo comprimento. Arroubos aos 23 anos.

Caracterizavam as interpretações de Emil Guilels uma profunda regularidade, a compreensão da forma de maneira integral, apesar de certas liberdades que imprimia em determinadas obras, sobretudo em composições específicas menos frequentadas do repertório. Sonoridade ampla em todas as intensidades, desde a ínfima à mais extrema, abrangente, sem jamais ser agressiva. Oitavas avassaladoras. Gilels sublimava a interpretação. Preservou tradições.

Clique para ouvir, na interpretação de Emil Gilels, o Prelúdio em si menor de J.S.Bach-Siloti:

https://www.youtube.com/watch?v=Yu06WnXlPCY&list=RDYu06WnXlPCY&index=1

Ouvindo os dois notáveis pianistas russos, Emil Guilels e Sviatoslav Richter (próximo post), que encantaram o Ocidente quando permitidos tocar fora das fronteiras da antiga União Soviética a partir dos anos 1950, diferenças entre as suas concepções musicais tornaram-se evidentes, mas a “espinha dorsal” interpretativa poderia também ser observada. Ambos egressos da classe do ilustre pianista e professor Heinrich Neuhaus (1888-1964). Estou a me lembrar das conversações com colegas franceses à altura, partidários de um ou de outro. Diálogos salutares e efervescentes. Se, àquela altura, Richter me causou mais impacto, ao longo da existência, pouco a pouco, Gilels se agigantou. Uma das gravações, a do Concerto para piano e orquestra nº 1 de Tchaikovsky, é icônica. Foi realizada em Chicago em 1959, com Fritz Reiner na regência.

Clique para ouvir, na interpretação de Emil Gilels, a gravação memorável:

https://www.youtube.com/watch?v=OrRwxJb2bH0

Após recital em 1985 no Théatre de Champs-Elysées, em Paris, pouco antes de sua morte, no qual constavam criações de Alexandre Scriabine e a Sonata Hammerklavier de Beethoven, escreve o crítico do “Le Monde” e do “Monde de la Musique”, Alain Lompech: “em 1985, a eloquência de Gilels exigia que acurássemos a escuta para não perder uma migalha, o que não tinha outro efeito que o de aumentar a tensão de um estilo severo sob o plano da expressão e refinado sob o plano instrumental. Não mais a pujança titânica de um toque orquestral, cujo equilíbrio milagroso entre a pura alegria pianística e a elevação do pensamento se impusera quando de suas saídas da União Soviética, logo após a Segunda Guerra mundial”.

Clique para ouvir, na interpretação de Emil Gilels, a Polonaise op. 53 em Lá bemol maior de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=ZEG_yjGGATQ

Uma das inúmeras virtudes de Gilels foi a da escolha dos programas. Possuidor de técnica pianística deslumbrante, dificilmente se apresentava com a finalidade de agradar àqueles que cultuam a “pirotecnia”. Beethoven, Schubert, Chopin, Schumann e Brahms frequentaram seus programas, assim como a música russa. O crítico do New York Times, Harold C. Schonberg, bem afirma que: “Gilels, grande virtuose que deixou sua marca em tudo que interpretava foi, ao mesmo tempo, um pianista para aqueles que pensam” (“The great pianists”, 1987). Atravessou todo o período da então União Soviética e a Nomenklatura o tinha como pianista oficial do regime. Acima de qualquer ideologia, Emil Gilels é um dos mais respeitados pianistas do planeta. Nome a não ser esquecido.

Emil Gilels (1916-1985) was one of the most significant pianists of the 20th century, great interpreter of Russian and also Western composers such as Beethoven, Schubert, Chopin, Schumann and Brahms. The first Soviet classical pianist allowed to travel to the West after World War II, he toured Europe and the United States starting from 1947. Both Gilels and his contemporary Sviatoslav Richter, another iconic Russian pianist, have been students of the renowned pianist and teacher Heinrich Neuhaus (1888-1964) at the Moscow conservatory. When a student in France back in the fifties, torn between Gilels and Richter, I was more impressed by the second. Over the years, however, my admiration for Gilels has grown due to his regularity, comprehensive understanding of the musical form, gentle control of sonority nuances and choice of repertoire, never making concessions to those who value flamboyance. A name not to be forgotten.