Não se escolhe, recebe-se

Uma das formas de saúde é a doença.
Um homem perfeito, se existisse,
seria o ser mais anormal que se poderia encontrar
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Fernando Pessoa
(“Livro do Desassossego”)

Confinados desde o início de Março de 2020, mormente Regina, que durante esse período só saiu de casa raríssimas vezes. Como bem diz slogan desgastado, mas único eficaz, seguimos a ciência.

Que o Brasil poderia estar numa posição bem mais confortável, o planeta bem o sabe. O negacionismo e a vaidade-ambição de dois governantes, respectivamente, permitiram a contenda verbal que persiste desde o início da pandemia. Já poderíamos ter várias vacinas imunizando o vasto país. Com a grande expertise em vacinação que o Brasil adquiriu ao longo das décadas, devido às endemias tropicais, males da primeira infância e à influenza, já teria o país basicamente toda a população vacinada.

Na realidade, foi a vaidade-ambição de um aspirante à presidência do país um dos motivos das reações negacionistas de um governante que se mostra incomodado com a possibilidade de um concorrente em próximas eleições. As atitudes dos dois são deploráveis, chamam a atenção pública e levam à hecatombe que presenciamos.

A oposição ferrenha, principalmente voltada ao mandatário-mor, apresenta-se sob o beneplácito de grande parte da mídia e faz-me lembrar dos documentários sobre a fauna africana no Serengueti e a presença constante, após o abate promovido pelos grandes predadores, das hienas com seus gargalhos estridentes buscando proveitos. Sob outra égide, se méritos há de um dos governantes no que tange à tramitação para que tivéssemos uma vacina, ficará sempre a mácula, pois na essência essencial dessa realização preexiste a “subjetiva” intenção de voos mais altos na vida política.

Desse embate insensato, que também faz lembrar contendas pueris de nossa infância, só malefícios podem ocorrer, mercê da exacerbação diária e fatigante dos envolvidos. Realmente é de se lamentar mais essa percepção rasteira de nossos governantes.

Dia marcado, lá estivemos, Regina e eu, na Unidade Básica de Saúde na Vila Nova Conceição. Fila pacífica, solidária e bem extensa, a corresponder a um quarteirão e meio (cerca de 350 metros), movimentou-se mui lentamente por cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos. Após, adentramos o pátio da escola e permanecemos mais de uma hora para ser vacinados, enquanto nossa filha Maria Fernanda cuidou internamente da documentação.

Foi-nos reservada a vacina Oxford AstraZeneca, pois a Coronavac estava a ser aplicada naqueles que já buscavam a segunda dose. Creio que, pelo fato da longa permanência na fila, considerando-se a faixa etária entre 80 e 84 anos, não poucos octogenários mostravam-se ansiosos e buscavam sem cessar informações que, naquele alvoroço, eram até convenientemente prestadas.

Logicamente a vacina não tem resultados imediatos. Continuaremos como se não tivéssemos recebido o imunizante, pois só deveremos retornar ao mesmo posto, para a segunda aplicação, no dia 24 de Maio. Apesar da comprovada competência de nossos infectologistas, são tantas as opiniões díspares desses especialistas que cabe a nós, cidadãos comuns, filtrá-las à luz da ciência sempre mencionada, mas com interpretações várias.

Tem-se de temer complicações vindouras advindas da Covid-19, pois parte considerável da população ignora a fatalidade representada pelo vírus. Amigos belgas, portugueses e franceses relatam, após acesso às mídias europeias, nem sempre confiáveis mercê de ideologias, a irresponsabilidade de parcela dos jovens e de outras faixas etárias, que no Brasil se aglomeram em festas clandestinas em quantidade bem superior à daqueles países.

Os noticiários internacionais têm inserções ácidas sobre o Brasil por vários motivos, como o negacionismo diário do governante-mor quanto à pandemia e o descompromisso de legião de irresponsáveis com as medidas de isolamento, graças também à permissividade do poder constituído, que não pune  exemplarmente os promotores dessas festanças formadoras de criminosos “culposos”. Estes, conscientes do mal que pode advir aos seus próximos mais próximos. Mencionei em blog bem anterior a fala de um jovem frequentador de um desses “pancadões” na periferia, que foi entrevistado por repórter de rádio. Sem máscara e descamisado, segundo relato, tão logo questionado sobre o regresso à morada de seus maiores e possíveis consequências, respondeu de imediato: “O problema é deles, não meu”.

Acredito, infelizmente, que teremos recrudescimento do Covid-19 em termos insustentáveis. Nos dias ensolarados, as praias continuarão lotadas, sendo que determinados cidadãos da idade madura, se perguntados, não mostram qualquer preocupação com a fatalidade à espreita. Um amigo, morador na periferia, disse-me que aos finais de semana ouve de sua casa batidas rítmicas e vozerio alto vindo de “pancadões” distantes. Todos os fins de semana, sem trégua!!! A Polícia Militar sabe desses encontros “criminosos” em tempos pandêmicos, assim como daquelas festas, a preços individuais altíssimos, que são realizadas pelas classes abastadas em mansões da cidade.

Ficaria a pergunta ao STF. Por vezes o STF, um dos três poderes, interfere em temas que acarretam críticas da classe política. Não poderia, nesse período trágico, viabilizar sanções drásticas a todos os promotores dessas aglomerações clandestinas? São eles que arregimentam dezenas de milhares de insensatos. Maculado tantas vezes pelo cidadão comum, se assim proceder, possivelmente o STF terá alguma melhora junto à avaliação pública.

Finalizando, remédios paliativos, enaltecidos pelo governante-mor, não têm reconhecimento científico pela OMS e outras instituições específicas. Sua preocupação se volta hoje a um spray nasal sem resultados comprovados cientificamente. Desdenhou a vacina, menospreza a máscara, insurge-se contra o confinamento e joga-se nos braços de adeptos fanatizados, quase todos sem a proteção necessária. Prega a não obrigatoriedade da vacina quando só ela se nos apresenta como solução, seja qual for. Esperemos que, mesmo contra sua vontade, a vacinação se acelere com a chegada de novos imunizantes. É o que o Brasil aguarda.


At last my wife and I got vaccinated against covid-19 last week, waiting for almost 3 hours in a huge line for our first dose in a nearby vaccination centre. Brazil has become an epicenter of the covid-19 outbreak and prospects for the future – both in economic and health terms – are bleak, largely due to federal government mismanagement of the epidemic and a considerable part of the population, especially the younger ones, irresponsibly and selfishly scorning the virus.