Um amigo singular multivocacionado

Estou a exigir muito de si?
Quem lhe há-de exigir muito senão os seus amigos?
Eles receberam o encargo de o não deixar amolecer e,
pela minha parte, tenha você a certeza
de que hei-de cumprir.
Você há-de dar tudo o que puder,
e mesmo, e sobretudo, o que não puder;
porque só há homem, quando se faz o impossível;
o possível todos os bichos fazem.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(“Sete cartas a um jovem filósofo”)

Conheci Joep Huiskamp em Julho de 2000 na cidade de Gent, na Bélgica Flamenga. Realizava a cuidadosa edição da integral dos Estudos para piano de Alexandre Scriabine, que gravara meses antes na Capela Saint-Hilarius, em Mullem, sob os cuidados do genial engenheiro de som Johan Kennivé, e traçava projetos futuros com André Posman, fundador da De Rode Pomp, selo que lançou vários CDs meus. Durante alguns anos, quando em Gent, ficava hospedado em casa de meus diletos amigos Tony Herbert e Tina (vide blog: “Tony Herbert – TTTT e o saber viver, 12/04/2008). Naquela oportunidade eles não estariam, pois iriam viajar durante as férias, mas escreveram-me que poderia hospedar-me em sua morada, pois um grande amigo do casal, o holandês Joep Huiscamp, lá estaria, a folgar durante alguns dias de sua laboriosa atividade em Eindhoven.

Amizades duradouras só se estabelecem se houver a ampla empatia entre duas pessoas. As circunstâncias de um início podem ser as mais inusitadas. Desde aquele Julho de 2000, uma relação amistosa se estabeleceu de maneira definitiva nesses 20 anos!!!

Joep é uma figura singular. Como conselheiro (integrante do “Executive Board”), trabalha na direção da Universidade de Tecnologia de Eindhoven (TU/e) desde 1990. Acumula a função de historiador da universidade, ocupando-se de seu patrimônio acadêmico. Joep é membro do comitê executivo da organização nacional que congrega as várias universidades da área tecnológica. Organiza mostras científico-acadêmicas e publica atividades da Universidade. Afirma: “felizmente encontro tempo livre para desenhar e pintar”. Realizou várias exposições na Holanda. Amante, como eu, dos Açores e da cultura portuguesa, mormente da ilha de São Jorge, realizou inúmeras viagens ao arquipélago. Traduziu para o holandês “O Mandarim”, de Eça de Queiroz” (2003).

Estou a me lembrar de que, naquele primeiro convívio, Joep e eu caminhávamos horas a descobrir a cidade. Museus foram visitados, feiras, templos medievais, canais movimentados e os jardins. Foram dias em que dialogamos sobre inúmeros aspectos da arte, sua evolução através da história, arte contemporânea inclusa, e a música sempre presente. No Museum Voor Schone Kunsten visitamos a exposição que me fez reconsiderar, a partir de importante mostra, meu conceito a respeito do fragmento na obra artística (vide “Victor Servranckx – 1897-1965 – A grandiosidade do fragmento ou esboço”, 12/03/2008). Nossas refeições se davam em várias localidades. Almoçamos certo dia no restaurante do centro administrativo e coração do movimento socialista fundado no final do século XIX em Gent, a Casa do Povo “Ons Huis”, edifício construído em 1899 e situado no centro da cidade, na praça do mercado de sexta-feira. Motivo para Joep comentar a história desse movimento e seus reflexos na região flamenga.

Nos nossos diálogos a música permanecia presente e o desenho colorido introdutório do post surgiu durante os momentos em que ouvia, no jardim da casa de Tony Herbert, o resultado das gravações realizadas meses antes em Mullem. Joep sempre caminhava a pensar no desenho ou na pintura. Ao comentar a obra do notável compositor açoriano Francisco de Lacerda – meu CD Debussy-Lacerda já havia sido lançado -, no dia seguinte, um sábado ensolarado, após nossa visita à feira de antiguidades ao pé da igreja de Saint-Jacob, deu-me um desenho colorido do músico português em cartão recortado em que não faltavam nem os óculos.

Sou um admirador de seus desenhos e pinturas, onde não são descartados elementos impactantes. Diria que seus trabalhos pictóricos têm muito do expressionismo, e a deformação de uma figura, menos do que representar pessimismo, negação ou angústia, revela um potencial emotivo singular.

Durante mais de vinte anos, ininterruptamente viajei para gravar em Mullem, na Capela de Saint-Hylarius, e para recitais não somente em Gent, mas em outras cidades belgas. Joep e sua esposa Jonneke estiveram presentes em vários recitais que dei em Gent e também na Antuérpia. Joep ou me mandava pelo Correio, que ainda funcionava no Brasil, ou me presenteava in loco com seus trabalhos gráficos. No recital na sala da Quatre Mains, em Gent (27/04/2017), finalizei o programa com “Vers la Flamme”, de Scriabine. Ofereceu-me instigante pintura sobre cartão em que focaliza as mãos. “Ir manados” através da amizade. Metáfora da criação magistral do compositor russo? O fogo metamorfoseado sanguinariamente…

Clique para ouvir, de Alexandre Scrabine, “Vers la Flamme”, por J.E.M., gravação ao vivo realizada na Igreja Nª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal (21/04/2017):

https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI

Agendáramos uma visita conjunta à Ilha de São Jorge (terra natal de Francisco de Lacerda), nos Açores, pois o arquipélago está indelevelmente retido no meu universo de afetos após tournée de recitais que realizei por três ilhas açorianas em 1992. No universo afetivo de Joep o arquipélago prepondera, tendo já realizado inúmeras viagens às ilhas. A pandemia adiou sine die essa possibilidade.

Penso retornar a Gent em 2022 para dois recitais. Tudo indica que seria uma nova oportunidade de nos encontrarmos. Oxalá aconteça.

I first met Joep Huiscamp in 2000 in Gent, in the Flemish region of Belgium, and we have been friends since then. Working at the Eindhoven University of Technology in the Netherlands, Joep says that, despite his intense workload, he finds time to draw and paint. With his wife, Jonneke, he attended almost all my recitals in Ghent and Antwerp, sending me afterwards paintings inspired by the recitals.