200 casos verídicos narrados por Jorge de Souza

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de navegar
Sobre as ondas azuis o nosso pensamento!
Miguel Torga
(“História Trágico-Marítima” – Alguns Poemas Ibéricos, 1952)

Na adolescência fascinavam-me os livros de biografias e as aventuras reais. Meu saudoso pai incentivava as histórias de figuras que permaneceram na história, pois as entendia como exemplos norteadores. As epopeias e grandes aventuras pouco a pouco também preenchiam minhas estantes. Marcas indeléveis permaneceram. Nos blogs, que remontam a Março de 2007, há inúmeros livros que, após leitura, resenhava ou comentava, mormente os relativos à cadeia de montanhas do Himalaia e seu pico maior, o Everest. Com a “vulgarização” das subidas ao pico, movidas por organizações especializadas nesse mister, centenas de “curiosos” sobem anualmente e não poucos sucumbem. Perdeu-se a magia, profanaram a Deusa Mãe do Céu Sagarmatha, segundo os nepaleses, desvirtuaram o alpinismo, hoje, de turismo. Apesar dessa realidade, ainda me entusiasma a leitura dos acessos ao K2, duzentos e pouco metros menos elevado, muito mais perigoso e, por não ser o maior, pouco visitado.

Nesses últimos dez anos entusiasmaram-me as aventuras do extraordinário aventureiro francês Sylvain Tesson e resenhei mais de dez livros (vide Resenhas e Comentários no menu) em que o autor descreve com agudeza suas andanças pelo planeta, quase sempre solitário.

Nessa interminável pandemia, li em um dos portais instigante artigo sobre um navegador que, em barco pequeno, realizou a circum-navegação do planeta sem parar em terra alguma. Ao fim da matéria havia publicidade de um livro: “Histórias do Mar – 200 casos verídicos” (São Paulo, Agência 2, 4ª edição, 2020). Interessei-me e adquiri-o via internet. A conta-gotas fui lendo as duas centenas de aventuras que se estendem do início do século XVI à atualidade. O autor, jornalista Jorge de Souza, é especialista em fatos, aventuras e histórias ligadas ao mar. Criou revistas afins e tem atuação permanente na mídia.

O notável navegador Amyr Klinck opina sobre o “Histórias do Mar”: “Sensacional! Livro viciante, daqueles que a gente não consegue parar de ler”.

Rigorosamente leigo na matéria, só entrei em um barco pequeno, o famoso pô-pô-pô – denominação simpática devido ao barulho do seu motor -, abundante nas águas do rio Guamá, para uma travessia de Belém à ilha do Cumbu. Comungo a opinião do pianista René François Duchâble (vide blog: “René François Duchâble”, 30/01/2021), que tem medo de viajar de navio e que jamais o fez. Esse é meu temor também, mas o fato não invalida assistir a documentários sobre barcos pesqueiros no mar do norte, ou aventuras marítimas pungentes. Recordo-me das duas leituras, uma na juventude e outra faz alguns anos, de “A expedição Kon-Tiki” (vide blog: 29/09/2018).

Amyr Klinck, tantas vezes navegante solitário, tem toda a razão sobre o livro. Centrei-me em poucas histórias diariamente, mas a vontade era prosseguir.

Jorge de Souza é um expert na temática “mar” sob os mais variados aspectos. Historicamente narra desde aventuras, naufrágios, pirataria e aspirações que remontam aos primórdios do século XVI. Torna-se evidente que a documentação desse período e os subsequentes é bem mais escassa, mas o autor, com perspicácia, consegue imprimir “atualização” a essas aventuras marítimas de antanho.

À medida que nos aproximamos do século XX e que a navegação se torna bem mais intensa, relatos ganham configuração mais abrangente, a não ser quando há misteriosos desaparecimentos de comandantes e seus adjuntos no mar, mas não das embarcações. Não são poucas essas narrativas. Pirataria em alto mar, revolta de tripulações que, após eliminarem comandantes e ajudantes, evadiram-se em barcos salva-vidas e igualmente deles não restariam traços. Jorge de Souza sempre enfatiza essas situações. Navios fantasmas.

Não há como pontuar algumas das 200 histórias, tantas trágicas, outras dramáticas e algumas hilárias. O texto de Jorge de Souza tem teor jornalístico, é leve, agradável, sem quaisquer requintes literários mais sofisticados. Talvez seja essa apreensão, independentemente de algumas histórias mais longas e elaboradas, que tornam a leitura tão agradável. Se não aborda o Titanic (mais de 1.500 vítimas), pois já se tornou um enfado retornar ao tema, creio que um pormenorizar maior sobre a tragédia marítima que atingiu 9.300 pessoas e que, no livro, tem como título “O triste fim do Titanic de Hitler”, enfatizaria ainda mais a insanidade das guerras, quando o transatlântico alemão Wilhelm Gustloff foi torpedeado por submarino russo em 30 de Janeiro de 1945, nos estertores da IIª Grande Guerra. O Titanic, cercado de glamour e aura de navio perfeito, foi a pique ao chocar-se com um iceberg; quanto ao segundo, superlotado por civis alemães em fuga e soldados feridos do regime nazista, dos certamente mais de 10.500 “passageiros” apenas 1.239 sobreviveram.

Um sobrevivente dirá décadas após: “os mortos estão tranquilos, mas nós, sobreviventes, morremos a cada dia”. Pungente documentário traduz a maior tragédia marítima em termos de vidas perdidas:

https://www.plongee-infos.com/chaque-jour-une-epave-30-janvier-1945-le-wilhelm-gustloff-la-plus-grande-tragedie-maritime-de-tous-les-temps/

A contrastar com essa magnitude, em “Histórias do Mar” Jorge de Souza conta casos até bizarros de viajantes solitários que, atingindo ou não seus objetivos, arriscaram-se pelos mais variados motivos: aventura, fuga, diversão, notoriedade, furto. Alguns se deram muito mal e levaram seus sonhos para o fundo do mar. Impressionam determinados casos de aventureiros que contam unicamente com o alimento extraído do mar — peixes, tartarugas — e do espaço, quando aves migratórias ou distantes de terra firme encontram um lugar para descansar. Nas “histórias” de Jorge de Souza sobre esses navegadores solitários o que não falta é a diversidade de condutas.

Jorge de Souza alerta sobre o descaso das autoridades que permitem que barcos superlotados de turismo ou de viajantes naveguem pelas águas brasileiras. Menciona a tragédia “do barco Novo Amapá na foz do rio Amazonas, onde morreram mais de 250 dos 600 passageiros – embora ele só tivesse capacidade oficial para 150 pessoas”. Oito meses após seria o Sobral Santos II, característica gaiola amazônica (Setembro, 1981), igualmente naufragando por falta de fiscalização, superlotado, a deixar dezenas de desaparecidos. O autor insere no livro a tragédia do  Bateau Mouche, também superlotado, que naufragaria na noite de 31 de Dezembro de 1988 na saída da Baia de Guanabara. Não há necessidade de profetizar, mas por desleixo na fiscalização tantas outras tragédias como essas serão tratadas pelo autor futuramente, hélas.

Pela abrangência, tem interesse especial o relato sobre o submarino alemão U-507, que, durante a IIª Grande Guerra, com seus torpedos afundou vários navios brasileiros em 1942. Comenta: “Foi ele, também, que decretou o trágico destino de mais de 600 brasileiros, muitos deles mulheres e crianças, ao torpedear navios de passageiros sem nenhum aviso. Foi Harro Schacht (comandante), enfim, que fez o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial, após a nação, indignada, romper sua neutralidade”. Meses após, em 1943, o submarino voltaria aos mares do sul e encontraria seu fim causado por bombas de profundidade lançadas por um avião Catalina, que escoltava comboio de navios.

Creio que o leitor poderá se interessar pelas narrativas que, por vezes, em casos específicos, são abordados por Jorge de Souza com fino humor ou ironia.

Ficaria apenas uma observação, resultado de meu desconhecimento de outras obras de sucesso do autor. Gostaria que houvesse sido inserida a extraordinária façanha de Ernest Henry Shackleton, que, na expedição à Antártida (1914-15), assistiu ao esmagamento pelo gelo de seu navio Endurance, mas que, após verdadeira epopeia, salvaria a tripulação.

Since my youth I have enjoyed books based on true adventures. Many have already been mentioned in this blog, like the ones about the Himalayan mountain range or the many books by the French adventurer Sylvain Tesson. “Histórias do Mar” (Sea Stories), written by Jorge de Souza, a journalist and editor specializing in facts occurring at sea, is a book of great interest and worth of attention. A real page turner, from beginning to end a compelling read.