Pianistas notáveis em extremos da existência

Nenhuma vida tem qualquer significado ou qualquer valor
se não for uma contínua batalha contra o que nos afasta da perfeição,
que é o nosso único dever.
Agostinho da Silva
(“As Aproximações”)

Neste primeiro dia de 2022, desejo a todos os meus leitores um ano venturoso e que almejos, retidos durante quase dois anos, realizem-se.

Considerando-se a maioria dos pianistas do passado, verifica-se que tantos exerceram a atividade até idade avançada. Dizia-se, inclusive, que a interpretação pianística era uma das causas para se chegar à longevidade. O caso emblemático relativo ao exercício até os estertores da existência está configurado em Miesczyslaw Horszowski, que realizou seu último recital na Filadélfia aos 100 anos de idade! Em sentido inverso, a fatalidade encerraria precocemente a carreira de outro notável pianista, William Kapell, que morreria aos 31 anos, vítima de acidente aéreo quando retornava aos Estados Unidos após turnê na Austrália. Quanto ao extraordinário Dinu Lipatti (1917-1950), a leucemia o consumiu aos 33 anos (vide blog: “Dinu Lipatti”, 06/02/2021).

Mieczyslaw Horzowski  nasceu na hoje Ucrânia e, como tantos outros músicos europeus que se naturalizariam norte-americanos, foi possivelmente o mais longevo pianista de alto nível a atuar. Aluno de um grande mestre, Karol Mikuli (1821-1897), que, por sua vez, foi aluno de Chopin e revisor de inúmeras obras do compositor polonês. Também estudou com outro grande mestre, Theodor Leschetizky (1830-1915), inúmeras vezes mencionado nos posts sobre notáveis pianistas e professores do século XX. Como menino prodígio, excursionou pela Europa e pelas Américas, mas a partir de 1911 suspendeu temporariamente a atividade pianística a fim de se dedicar, em Paris, à literatura, história e filosofia. De origem judaica, converter-se-ia ao catolicismo, sem contudo renegar a religião originária.

Entre os grandes pianistas, Horzowski é exemplo típico de quem soube se dedicar a um repertório qualitativo, mas escolhendo obras que se adaptassem às condições de suas mãos pequenas. Esse condicionamento não o impediu de ter repertório amplo. Durante o período entre as duas guerras e a série de atividades como pianista, fixou-se em Milão, mas em plena Segunda Grande Guerra emigra para os Estados Unidos, tornando-se cidadão norte-americano em 1948.  Seu olhar voltado ao passado também o direcionou às obras do seu tempo, entre elas criações de Vincent D’Indy, Stravinsky, Martinu, Sszmanowski e Villa-Lobos. Aos 87 anos, Horszowski gravou Sonatas de Lodovico Giustini (1685-1743), primeiro compositor a compor para pianoforte, instrumento idealizado por Bartolomeo Cristofori (1655-1731), relevante atestado da abrangência repertorial do pianista. Sob outra égide, suas interpretações primam pela sobriedade não desprovida de emoção. Nenhum exagero, mas sim serenidade e a natural inclinação para a transmissão da mensagem musical na sua essência essencial.

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski, de J.S.Bach, a Suíte Francesa nº 6 em Mi Maior:

https://www.youtube.com/watch?v=VhSgTR3R7uc

Inúmeras vezes solou sob a regência de Toscanini.  Destacou-se também como exímio camerista, atuando com o notável violoncelista Pablo Casals, assim como com os violinistas Joseph Szigetti, Alexander Schneider e o renomado Quarteto de Budapeste. Ficaram marcantes seus ciclos Beethoven, entre 1954-1955, e Mozart em 1960 na cidade de Nova York.

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski aos 95 anos, de Chopin, o Impromptu nº 1 op. 29:

https://www.youtube.com/watch?v=nPIXWKqC5mI

Há muitas gravações de Horszowski distribuídas por significativos selos. Como professor do Curtis Institute of Music, na Filadélfia, teve como alunos que desenvolveram carreiras relevantes: Murray Perahia, Peter Serkin, Anton Kuerti, Steve de Groote, entre outros. Faleceu um mês antes de completar 101 anos e, uma semana antes do desenlace, ainda dava aulas!

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski aos 97 anos, de Chopin, Noturno em Mi Bemol Maior e Estudo op. 25 nº  2. Observa-se, nessas interpretações emblemáticas, uma prática utilizada por tantos pianistas do período, como Alfred Cortot (1877-1962), ou seja, a defasagem das mãos, mormente nos andamentos lentos.

https://www.youtube.com/watch?v=ZCrsKGfJP_w

Numa outra ponta da existência, William Kapell, nascido em Nova York, tem a vida abruptamente abreviada em acidente aéreo, num momento da carreira que já o colocava como um dos mais destacados pianistas de sua geração. Entre seus professores, destaca-se Olga Samaroff, casada com o regente Leopold Stokowsky. Obteve uma série de prêmios nos concursos pianísticos nos Estados Unidos e, aos 19 anos, após recital patrocinado em Nova York, assinou contrato de gravações exclusivas para a RCA Victor.

A seguir, Kapell notabilizar-se-ia ainda mais após a sua execução do Concerto para piano e orquestra de Aram Khachaturian e seria responsável, em 1946,  pela primeira gravação do Concerto, com a orquestra Sinfônica de Boston sob a regência de Serge Koussevitzky. Rigoroso, disciplinado, cronometrava suas horas de estudo e não desprezava conselhos de destacados músicos ascendentes, como Vladimir Horowitz, Artur Schnabel, Rudolf Serkin, Pablo Casals e tantos outros luminares. Possuidor de uma excepcional técnica e de ímpar musicalidade, Kapell excursionaria, no final dos anos 1940, pelos Estados Unidos, Canadá, Europa e Austrália.

Seu último recital, após turnê pela Austrália, deu-se aos 22 de Outubro de 1953 em Geelong, Victoria. Alguns dias depois regressaria aos Estados Unidos, não sem antes dizer que não mais retornaria à Austrália, após críticas desabonadoras que recebera. Na manhã de 29 do mesmo mês, o avião em que viajava se espatifou ao colidir com árvores pouco antes da aterrissagem em São Francisco.

Houve comoção absoluta no meio artístico, mormente o norte-americano, pois, segundo o pianista Léon Fleisher (1928-2020), Kapell foi “o maior pianista que este país jamais produziu”.

Clique para ouvir, de Aram Khachaturian, Concerto para piano e orquestra na interpretação emblemática de William Kapell, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Boston sob a regência de Serge Koussevitzky (1946):

https://www.youtube.com/watch?v=wEi2C2-5G14

Causa forte impressão a leitura que William Kapell faz das obras executadas. Independentemente do pleno domínio, há uma consistência sem qualquer esforço para causar efeito acrobático. Tudo é realizado com a maior naturalidade e um respeito absoluto ao compositor. No universo mediático em que se estar a viver, o gesto, as micagens tornaram-se imperativos frente às câmaras. O virtuosismo está a serviço, em inúmeros casos, do impacto visual e auditivo. Uma das características da “civilização do espetáculo”, como bem apregoa Mario Vargas Llosa. William Kapell, possuidor de uma das mais impactantes virtuosidades, transforma-a em algo natural. A música em primeiro lugar, primazia absoluta. Não sem razão Leon Fleischer (1928-2020), notável pianista, afirmaria que Kapell foi “o maior pianista que os Estados Unidos jamais produziram”.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, na interpretação maiúscula de William Kapell, a Rapsódia Húngara nº 11:

https://www.youtube.com/watch?v=K0QUJUq2DcU

Dois grandes mestres do teclado pertencentes a gerações e escolas distintas, mas que permanecem no panteão dos iluminados do piano.

Miesczyslaw Horszowski and William Kapell, extraordinary pianists, lived extremes of human existence. Horszowski had one of the longest careers in the history of performing arts, dying at 101, while Kapell died at 31 after a tragic plane crash. However, both are linked by their exceptional interpretative qualities, and their names live on as stars of 20th century pianism.