Navegando Posts publicados em janeiro, 2022

A partir de uma história real, a imaginação viaja

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

Recebi de uma leitora o livro “O último duelo” (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2021) de Eric Jager , crítico literário voltado principalmente à literatura medieval. O enredo se passa durante a Guerra dos 100 anos entre França e Inglaterra, a ter como protagonistas principais três figuras que fazem parte do histórico real da França: Jean de Carrouges, cavaleiro normando, sua esposa Marguerite e o escudeiro Jacques Le Gris. Vivendo em pleno século XIV, as três figuras permanecem na literatura francesa através dos séculos.

Tenho sempre desconfiança, possivelmente devido aos trabalhos exegéticos exigidos na Academia, ao ler pesquisas sem dúvida sérias, mas intermediadas pela imaginação do autor, fator expurgado na área da História quando de dissertações e teses. Sob outra égide, há que se destacar o desiderato maior de um autor, no caso Eric Jager, doutor pela Universidade de Columbia e professor premiado de inglês na UCLA, que, ao imaginar situações possíveis através da leitura de fontes fidedignas, angaria um número incomensurável de leitores não necessariamente interessados na veracidade dos fatos. A notoriedade de “O último duelo”, inclusive, inspirou o filme “The Last Duel”, dirigido pelo renomado Ridley Scott. Na “Nota do autor”, Eric Jager esclarece os porquês: “Todos os personagens, locais, datas e muitos outros detalhes – incluindo o que as pessoas da época disseram e fizeram, suas declarações muitas vezes contraditórias na corte, as somas pagas e recebidas, e mesmo as condições climáticas – são reais e baseados em tais fontes. Quando estas se contradizem, apresento o relato mais provável dos fatos. Quando o registro histórico é insuficiente, uso a imaginação para preencher alguns hiatos, sempre tentando ouvir as vozes do passado”. Essa escuta do imaginário, ao “complementar” fontes fidedignas, configuraria enxertos à história. Se a lacuna de uma fonte documental existe, inventá-la dirige o texto a um público menos exegético, mas necessariamente amplo, pois mais preocupado com a narrativa em si, curioso sobre o desfecho, do que com a interrogação que leva à dúvida. O esclarecimento de Eric Jager evidencia propósito claro.

Foram dez anos de longa pesquisa frente a um manancial de documentos que levou o autor a tantas viagens, a fim de que sua visão dessa história, a envolver personagens que permanecem através dos séculos graças à larga documentação, fizesse com que renascessem numa narrativa harmoniosa, tornando-os conhecidos por número incalculável de leitores e, como consequência, pelos amantes do cinema.

Uma brevíssima sinopse faz-se necessária para que se conheça o enredo histórico. Está-se em pleno século XIV durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que antagonizou França e Inglaterra. O cavaleiro normando Jean de Carrouges, que participara de várias batalhas, em um de seus retornos ouve a confissão de sua esposa, que assegura ter sido estuprada por um seu ex-amigo de combates, mas há tempos inimigo declarado, o escudeiro Jacques Le Gris. O caso, levado a várias instâncias judiciárias, recebe finalmente a decisão do Rei Carlos VI, então nos seus 17 anos, após a autorização do Parlamento de Paris, declarando que haveria o duelo entre os dois. Àquela época as penas eram implacáveis. Se perdesse, Carrouges não só morreria na arena, como sua esposa Marguerite seria queimada viva por perjúrio. Foi o último duelo oficial do gênero em França. Munidos de todo o arsenal de combate, como armadura, cavalo, lança, machado, espada e adaga, um dos combatentes encontraria a morte, tida como expressa vontade de Deus. Através da história, dúvidas permaneceram a respeito da veracidade das confissões.

Há na internet documentação sobre esse tumultuoso caso, que se prolonga ao longo dos séculos nem sempre no mesmo direcionamento, mas que ganharia ímpar notoriedade através do livro de Eric Jager e do filme dirigido por Ridley Scott.

Frise-se que Eric Jager conduz a trama de maneira a manter o leitor atento ao desenrolar do enredo e tece comentários de interesse sobre os julgamentos àquela altura e as penas fatais dos condenados, de extrema crueldade.

Estou a me lembrar de que, após gravação de CD dedicado ao notável compositor português Fernando Lopes-Graça, em Leiria no ano de 2003, visitei, no Castelo Medieval da cidade, no alto de uma colina, a Exposição Internacional dos instrumentos de tortura autênticos usados na Idade Média. Para cada engenho fatídico havia um painel com cópia de desenho ou pintura de época, a evidenciar a utilização do instrumento de martírio. Aconselharam-me a não visitar, tamanho o impacto. Todavia, quis conhecer. Entendi os limites absolutos da tortura. Ao sair da Exposição quiseram-me vender um magnífico livro com “belíssimas” ilustrações. Respondi jocosamente à funcionária: “já não basta a Exposição?”. Na descida do belo Castelo Medieval restaurado deparei-me com várias senhoras a vomitar.

Após a leitura assisti ao filme “The last duel”, dirigido por Ridley Scott. Sendo um filme e não um documentário, mais elementos fantasiosos foram adicionados para que a condução do enredo se tornasse palatável. Se, sob uma ótica, entendo impecáveis a caracterização dos personagens, dos locais escolhidos, dos Castelos autênticos e das batalhas, a condução da história, a objetivar o grande público, está plena de intermediações criadas pelos roteiristas Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon, responsáveis pelas três partes do filme. Nestas, há repetições, pelo fato de os “roteiros” dos três personagens históricos terem, por vezes, situações semelhantes. Resulta uma imaginação ainda mais fecunda àquela do livro de Eric Jager. A escolha da iluminação dos interiores leva ao espectador a noção dos recintos de antanho, à luz de velas ou tochas, o que tem boa dose de autenticidade. Os atores Matt Damon (cavaleiro Jean de Carrouges), Adam Driver (escudeiro Jacques Le Gris), a bela Jodie Comer (Marguerite de Carrouges) estão excelentes em seus respectivos papéis tão contrastantes, assim como Ben Affleck (Conde Pierre d’Alençon). Pena que o jovem Rei Carlos VI apareça sempre como um imbecil. Reza a história que, a partir de determinada altura, teve acessos de loucura.

Acredito que a leitura do livro e o consequente filme possibilitem reflexões sobre a realidade dos fatos e comparações com acontecimentos hodiernos.

“The Last Duel”, a book by Eric Jager, a literary critic and specialist in medieval literature, is of interest. The author has done researches in reliable sources, but uses his imagination to fill in gaps in the real story. It reached huge audiences, turning into a motion picture directed by Ridley Scott. Book and film, despite deviations from reality, present the last judiciary duel held in 14th-century France between a knight, a squire and, as a pivot, the wife of the first, with themes that echo powerfully until today.

 

Pianistas notáveis em extremos da existência

Nenhuma vida tem qualquer significado ou qualquer valor
se não for uma contínua batalha contra o que nos afasta da perfeição,
que é o nosso único dever.
Agostinho da Silva
(“As Aproximações”)

Neste primeiro dia de 2022, desejo a todos os meus leitores um ano venturoso e que almejos, retidos durante quase dois anos, realizem-se.

Considerando-se a maioria dos pianistas do passado, verifica-se que tantos exerceram a atividade até idade avançada. Dizia-se, inclusive, que a interpretação pianística era uma das causas para se chegar à longevidade. O caso emblemático relativo ao exercício até os estertores da existência está configurado em Miesczyslaw Horszowski, que realizou seu último recital na Filadélfia aos 100 anos de idade! Em sentido inverso, a fatalidade encerraria precocemente a carreira de outro notável pianista, William Kapell, que morreria aos 31 anos, vítima de acidente aéreo quando retornava aos Estados Unidos após turnê na Austrália. Quanto ao extraordinário Dinu Lipatti (1917-1950), a leucemia o consumiu aos 33 anos (vide blog: “Dinu Lipatti”, 06/02/2021).

Mieczyslaw Horzowski  nasceu na hoje Ucrânia e, como tantos outros músicos europeus que se naturalizariam norte-americanos, foi possivelmente o mais longevo pianista de alto nível a atuar. Aluno de um grande mestre, Karol Mikuli (1821-1897), que, por sua vez, foi aluno de Chopin e revisor de inúmeras obras do compositor polonês. Também estudou com outro grande mestre, Theodor Leschetizky (1830-1915), inúmeras vezes mencionado nos posts sobre notáveis pianistas e professores do século XX. Como menino prodígio, excursionou pela Europa e pelas Américas, mas a partir de 1911 suspendeu temporariamente a atividade pianística a fim de se dedicar, em Paris, à literatura, história e filosofia. De origem judaica, converter-se-ia ao catolicismo, sem contudo renegar a religião originária.

Entre os grandes pianistas, Horzowski é exemplo típico de quem soube se dedicar a um repertório qualitativo, mas escolhendo obras que se adaptassem às condições de suas mãos pequenas. Esse condicionamento não o impediu de ter repertório amplo. Durante o período entre as duas guerras e a série de atividades como pianista, fixou-se em Milão, mas em plena Segunda Grande Guerra emigra para os Estados Unidos, tornando-se cidadão norte-americano em 1948.  Seu olhar voltado ao passado também o direcionou às obras do seu tempo, entre elas criações de Vincent D’Indy, Stravinsky, Martinu, Sszmanowski e Villa-Lobos. Aos 87 anos, Horszowski gravou Sonatas de Lodovico Giustini (1685-1743), primeiro compositor a compor para pianoforte, instrumento idealizado por Bartolomeo Cristofori (1655-1731), relevante atestado da abrangência repertorial do pianista. Sob outra égide, suas interpretações primam pela sobriedade não desprovida de emoção. Nenhum exagero, mas sim serenidade e a natural inclinação para a transmissão da mensagem musical na sua essência essencial.

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski, de J.S.Bach, a Suíte Francesa nº 6 em Mi Maior:

https://www.youtube.com/watch?v=VhSgTR3R7uc

Inúmeras vezes solou sob a regência de Toscanini.  Destacou-se também como exímio camerista, atuando com o notável violoncelista Pablo Casals, assim como com os violinistas Joseph Szigetti, Alexander Schneider e o renomado Quarteto de Budapeste. Ficaram marcantes seus ciclos Beethoven, entre 1954-1955, e Mozart em 1960 na cidade de Nova York.

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski aos 95 anos, de Chopin, o Impromptu nº 1 op. 29:

https://www.youtube.com/watch?v=nPIXWKqC5mI

Há muitas gravações de Horszowski distribuídas por significativos selos. Como professor do Curtis Institute of Music, na Filadélfia, teve como alunos que desenvolveram carreiras relevantes: Murray Perahia, Peter Serkin, Anton Kuerti, Steve de Groote, entre outros. Faleceu um mês antes de completar 101 anos e, uma semana antes do desenlace, ainda dava aulas!

Clique para ouvir, na interpretação de Mieczystaw Horszowski aos 97 anos, de Chopin, Noturno em Mi Bemol Maior e Estudo op. 25 nº  2. Observa-se, nessas interpretações emblemáticas, uma prática utilizada por tantos pianistas do período, como Alfred Cortot (1877-1962), ou seja, a defasagem das mãos, mormente nos andamentos lentos.

https://www.youtube.com/watch?v=ZCrsKGfJP_w

Numa outra ponta da existência, William Kapell, nascido em Nova York, tem a vida abruptamente abreviada em acidente aéreo, num momento da carreira que já o colocava como um dos mais destacados pianistas de sua geração. Entre seus professores, destaca-se Olga Samaroff, casada com o regente Leopold Stokowsky. Obteve uma série de prêmios nos concursos pianísticos nos Estados Unidos e, aos 19 anos, após recital patrocinado em Nova York, assinou contrato de gravações exclusivas para a RCA Victor.

A seguir, Kapell notabilizar-se-ia ainda mais após a sua execução do Concerto para piano e orquestra de Aram Khachaturian e seria responsável, em 1946,  pela primeira gravação do Concerto, com a orquestra Sinfônica de Boston sob a regência de Serge Koussevitzky. Rigoroso, disciplinado, cronometrava suas horas de estudo e não desprezava conselhos de destacados músicos ascendentes, como Vladimir Horowitz, Artur Schnabel, Rudolf Serkin, Pablo Casals e tantos outros luminares. Possuidor de uma excepcional técnica e de ímpar musicalidade, Kapell excursionaria, no final dos anos 1940, pelos Estados Unidos, Canadá, Europa e Austrália.

Seu último recital, após turnê pela Austrália, deu-se aos 22 de Outubro de 1953 em Geelong, Victoria. Alguns dias depois regressaria aos Estados Unidos, não sem antes dizer que não mais retornaria à Austrália, após críticas desabonadoras que recebera. Na manhã de 29 do mesmo mês, o avião em que viajava se espatifou ao colidir com árvores pouco antes da aterrissagem em São Francisco.

Houve comoção absoluta no meio artístico, mormente o norte-americano, pois, segundo o pianista Léon Fleisher (1928-2020), Kapell foi “o maior pianista que este país jamais produziu”.

Clique para ouvir, de Aram Khachaturian, Concerto para piano e orquestra na interpretação emblemática de William Kapell, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Boston sob a regência de Serge Koussevitzky (1946):

https://www.youtube.com/watch?v=wEi2C2-5G14

Causa forte impressão a leitura que William Kapell faz das obras executadas. Independentemente do pleno domínio, há uma consistência sem qualquer esforço para causar efeito acrobático. Tudo é realizado com a maior naturalidade e um respeito absoluto ao compositor. No universo mediático em que se estar a viver, o gesto, as micagens tornaram-se imperativos frente às câmaras. O virtuosismo está a serviço, em inúmeros casos, do impacto visual e auditivo. Uma das características da “civilização do espetáculo”, como bem apregoa Mario Vargas Llosa. William Kapell, possuidor de uma das mais impactantes virtuosidades, transforma-a em algo natural. A música em primeiro lugar, primazia absoluta. Não sem razão Leon Fleischer (1928-2020), notável pianista, afirmaria que Kapell foi “o maior pianista que os Estados Unidos jamais produziram”.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, na interpretação maiúscula de William Kapell, a Rapsódia Húngara nº 11:

https://www.youtube.com/watch?v=K0QUJUq2DcU

Dois grandes mestres do teclado pertencentes a gerações e escolas distintas, mas que permanecem no panteão dos iluminados do piano.

Miesczyslaw Horszowski and William Kapell, extraordinary pianists, lived extremes of human existence. Horszowski had one of the longest careers in the history of performing arts, dying at 101, while Kapell died at 31 after a tragic plane crash. However, both are linked by their exceptional interpretative qualities, and their names live on as stars of 20th century pianism.