Um notável músico-pensador argentino

Por que insistir em afirmar que um artista se sacrifica pelo seu ideal:
seria mais razoável considerar que é o ideal que o sacrifica.
Ou, mais uma vez, pode-se supor que, se há sacrifício,
é sempre em nome de uma vocação,
o que diminui a martirologia dos sacrificados.

A verdadeira maturidade só começa
quando o homem toma consciência efetiva da sua própria solidão.

Juan Carlos Paz
(“Memorias I”)

Um dos prazeres do leitor é regressar a um livro décadas após a leitura. Meu dileto amigo, arquiteto António Menéres, após sólida carreira em Portugal, deixou impressões em seu livro autobiográfico “Crônicas contra o esquecimento” (vide blog: 29/07/2007). Como define bem o apreço que adquirimos pela obra impressa! Escreve Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”. Deu-se o mesmo ao ver a lombada de um livro numa estante bem alta, subir a escada metálica e voltar a visitá-lo quase cinquenta anos após!  Ratifica a apreensão que se tem hoje dos livros online, assim como do já quase sepultamento dos CDs. Perde-se o contato físico e dificilmente há o retorno àquilo que jaz nos arquivos “voláteis”. Dir-se-ia que uma névoa está a se tornar cada vez mais densa, a nos separar daquilo que denominávamos biblioteca individual. Quanto às públicas, tantas delas extraordinárias, poderão brevemente ter o nome substituído pelos termos “Museu dos Livros”. Um dos meus amigos só frequenta literatura pelo tablet. À minha pergunta se saberia apontar alguns dos livros assimilados, respondeu-me que não saberia. Os tempos atuais apagarão a memória “física”? Temo pela fatalidade.

“Alturas, tensiones, ataques, intensidades. (Memorias I)”, de Juan Carlos Paz (Buenos Aires, De La Flor, 1972), possivelmente jamais teria retornado para uma nova leitura não fosse a sua presença silenciosa na mais elevada estante. O debruçar atual apenas se adequou perfeitamente aos nossos dias, mercê também do perfil do compositor, teórico e pensador argentino.  Não há defasagem no seu pensar que surge já nas primeiras décadas do século XX e se desenvolve com coerência até pouco antes de sua morte em 1972. O pensamento do autor é atualíssimo e fica patente que há um recrudescimento quanto aos aspectos preocupantes elencados por Paz, a evidenciar sua extraordinária visão atemporal.

Após estudos em Buenos Aires, Juan Carlos Paz aperfeiçoou-se em Paris na Schola Cantorum, sob a didática de Vincent d’Indy. Foi um dos fundadores do “Grupo Renovación” (1929) e em 1936 funda os célebres “Conciertos de la Nueva Música”. Paz foi talvez o mais influente incentivador da música contemporânea na Argentina, sendo o introdutor da técnica dos doze sons estabelecida por Arnold Schoenberg, técnica por Paz abandonada em detrimento de uma linguagem mais experimental, diferentemente do compositor francês Serge Nigg (1924-2008), que foi o primeiro a compor obra dodecafônica em França, rejeitando-a poucos anos após a favor de criações mais tradicionais (vide: “Serge Nigg – Captar o passado, Apreender o presente, Pressentir o futuro”, 04/03/2011). Apesar de não ter composto muito, a produção de Juan Carlos Paz tem interesse. Deter-me-ei nos aspectos que não envolvem a técnica composicional, temática pertencente a um outro fórum que não este dos posts semanais com destinação mais eclética.

Clique para ouvir de Juan Carlos Paz, “Ritmica Ostinata”:

(541) Juan Carlos Paz – Ritmica Ostinata – YouTube

No livro em apreço tem-se basicamente o pensamento multicultural do compositor. Técnica de composição, tradição e vanguarda, sociedade, repertório, recepção pública, arguto senso crítico a respeito do estágio da música no século XX. Inseridas no livro, reflexões múltiplas sobre o cotidiano observado com agudeza. Nada é despiciendo em sua avaliação. Anota e transcreve, por vezes é anedótico quando o olhar e a mente captam um momento transformado em frase jocosa. Um aspecto fulcral do pensamento de Juan Carlos Paz é a coerência argumentativa, seja na avaliação a mais aprofundada, como no supérfluo tratado com humor ou desalento.

Muito do pensar do autor causou-me forte impressão àquela altura, ratificando-se no presente sob outra percepção, basicamente mercê dos acúmulos após tantas décadas. No post apresento segmentos do raciocínio de Paz relativos às várias áreas frequentadas pelo compositor e teórico.

No prólogo já alerta: “A realização deste livro me divertiu, em parte e menos divertidamente, diria, motivado pelas limitações facilmente comprovadas; todavia decidi publicá-lo, não para que aqueles que o lerem aprendam a corrigir seus erros às custas dos meus, segundo a hipócrita atitude ou conselho mais ou menos velado dos autores de memórias, diários, confissões, mas para que os cometam melhor do que eu, em forma mais atrativa, intensa e divertida, se ao menos puderem”.

Sobre o ato de compor: “Para quem escrevo música, poderia alguma vez questionar-me. Afirmaria que escrevo para mim; para quem, francamente, não sei nem pensei; pois é tal a quantidade de música que se escreve, – à qual agregamos a nossa – que caberia a pergunta, à parte os porquês e para quem, simplesmente o quando e o porquê”.

Após mencionar a célebre frase de Buffon (1707-1788), Le style c’est l’homme, enumera uma quantidade expressiva de grandes compositores do passado notabilizados pelos seus estilos definidos, precisando que os que os sucederam formaram escolas e foram meros teóricos. Essa postura crítica se estende por uma série de reflexões em que condena o establishment que faz proliferar epígonos, tantos deles sem talento.

Paz considerava Moussorgsky (1839-1881) o virtual precursor do expressionismo sonoro e acrescenta: “… personifica o mais incongruente e extraordinário desafio do instinto criador contra toda retórica racionalizada na organização sonora”.

Sobre a forma musical, Paz tece considerações sobre a relação intrínseca com o de profundis de um compositor: “A música deve significar uma coincidência da investigação formal com a experiência interna do compositor; é algo que se sabe, apesar de bem esquecido por razões de tática. A grande lição de Beethoven e dos românticos em geral, e de Schönberg e Debussy em particular, consiste em demonstrar que a forma não é um molde confortável, senão a consequência externa de um processo interno”. A posição do autor não se aplicaria também à literatura, à poesia e às artes em geral?

Paz é bastante ácido com os musicólogos e os críticos: “Os musicólogos são os seres mais desprovidos de musicalidade que eu conheci. Não sentem nem entendem a música, considerando-a obstinadamente como uma vertente da arqueologia”. Ao considerar a crítica, mencionando várias áreas – literatura, música, teatro, artes plásticas – e estendendo sua posição também aos teóricos de arte, de ideologias e de religiões, comenta: “sua sabedoria se baseia unicamente na nossa ignorância, nossa benevolência e nossa credulidade”.

Quanto à repetição repertorial realizada pela grande maioria dos intérpretes, Juan Carlos Paz mostra-se crítico mordaz: “… a música é algo que rigorosamente não conta, não interessa nem ao virtuose-monstro, insensibilizado por força de repetição constante das mesmas obras, nem ao público, que só deseja ouvir mais uma vez. A indústria do concerto! Esses virtuoses são como máquinas que engolem moedas. Você deposita uma no espaço a ela reservado e imediatamente a máquina agradece enviando-lhe uma torrente de música: você paga a entrada do recital e o virtuose o recompensa fazendo-o ouvir pela milésima vez ‘a’ Polonaise de Chopin, ‘a’ Sonata ao Luar de Beethoven, La Campanella de Liszt ou a Pavane de Ravel, todo um intercâmbio de duas desconsoladoras rotinas. Resultado positivo: negócios para empresários. Nada mais”.

Ao comentar a mutação interpretativa através dos tempos, Paz polemiza sobre tema que nunca teve consenso. Observa: “O teatro, a música e a dança são as mais evasivas e menos fiéis, entre todas as artes, aos desejos e às finalidades de seus criadores. Suas limitações quanto a essa particularidade consistem em que, para se expressar junto ao público, necessitam do intérprete – ator, diretor, executante, cantor, dançarino -, na realidade deformadores das aspirações do autor, em maior ou menor dimensão”.

Após discorrer sobre a mentalidade de dois intérpretes que podem ter ideias diversas sobre uma determinada obra, Paz se questiona sobre a interpretação fiel. “Sabemos por acaso como Beethoven, Berlioz, Schumann, Chopin e Liszt exigiam a interpretação adequada? Constata-se pois que, não sendo desejável a versão arqueológica à base da interpretação fidedigna, que na realidade nada dela sabemos, só nos resta, para a música, o teatro e a dança, a versão perpetuamente mutante, recriada, modificada, metamorfoseada segundo o temperamento, a cultura, as afinidades ou preferências, e até a saturação do intérprete em determinado período de sua evolução ou da circunstância em que atua”.

Em vários artigos publicados no Brasil e no Exterior sobre as composições de Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Carlos Seixas (1704-1742), originalmente escritas para cravo e que gravei ao piano para o selo belga De Rode Pomp, observei que o silêncio de mais de um século das interpretações ao cravo faz entender que nada sabemos sobre as execuções dessa música no instrumento original, mas que a escuta, nessa relação professor-aluno, foi a responsável pela interpretação ao piano dessa imensa produção durante o longo período silencioso do cravo. Nenhum dos grandes compositores do vasto período romântico no século XIX compôs para cravo. A oralidade professoral foi fator decisivo para que a tradição da criação para o instrumento, que imperou basicamente nos séculos XVII e XVIII, não se perdesse quando interpretada ao piano.

A respeito da ópera, escreve: “Para mim, a ópera ideal seria aquela em que os cantores, em determinado instante da ação, se esquecessem de atuar”. Tradução: J.E.M.

Quantos não foram os autores que escreveram memórias? Há aquelas que se perdem nas profundezas da arqueologia social e outras que impressionam e anteveem o futuro, pois não envelhecem. Visitá-las torna-se uma possibilidade de entendermos os fracassos e os acertos da trama social e da cultura como um todo. Nessa visão, Juan Carlos Paz mostra-se um profeta após tantas décadas decorridas.

Juan Carlos Paz, Argentine composer, theorist and thinker, has been the introducer of dodecaphonism in his country. In his book of memoirs, he explores the most varied topics on music, literature, art and history, not failing to be humorous when everyday life makes an impression on him.