Navegando Posts publicados em fevereiro, 2023

Um Grande Mestre na arte do Shakuhati
(flauta de bambu clássica japonesa)

A vida, para a vida, é sempre longa;
mas para a arte é sempre breve;
só quando não se faz nada há sempre tempo.
Agostinho da Silva
(“Sete Cartas a um Jovem Filósofo”)

Não foram poucos os leitores que se interessaram pelo livro Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes, e buscarão obtê-lo. Notícia alvissareira. Alguns outros queriam saber mais sobre Tsuna Iwami, após os três poemas para piano que inseri nos dois blogs dedicados ao Dai-Nippon. Coincidentemente, comemora-se neste ano o centenário de nascimento de Tsuna Iwami.

Distintamente de Moraes, Iwami, engenheiro, ao aportar no Brasil em 1956 se casaria e constituiria família, mas jamais se desprenderia de suas profundas raízes, independentemente do afeto à terra que o abrigaria até a morte. Realizava suas orações budistas, cultuava as tradições, vestindo-se, quando em sua morada, com quimono, e era atento ao cerimonial do chá. Sua esposa Haydée era sensível especialista nas iguarias japonesas.

Conheci-o na década de 1970 e nos tornamos amigos na acepção do termo. Em sua profícua formação, Iwami também estudou composição e, paralelamente, foi exímio intérprete da milenar flauta Shakuhati. Era um profundo admirador de segmentos da música ocidental, mormente de Claude Debussy (1862-1918), que tanto apreendeu da cultura do Extremo-Oriente. Quantas não foram as vezes em que, antes de uma apresentação pública na qual interpretaria programa novo, repassava-o em sua residência, serões esses que sempre tinham a presença do médico Ruy Yamanichi, saudoso amigo, e sua esposa Margareth. Após a récita, e antes do cerimonial do chá, à meia luz, Tsuna Iwami interpretava uma ou mais peças ao Shakuhati, para nossa grande admiração.

As mensagens recebidas fizeram-me lembrar de um número da “Revista do Instituto de Estudos Brasileiros” da Universidade de São Paulo (1995 – nº 39) dedicado às comemorações dos 100 anos do Tratado de Amizade entre o Brasil e o Japão. À época, a Direção da Revista estava sob os cuidados da atuante Profa. Marta Rossetti Batista (1940-2007). Tive o privilégio de integrar o Conselho Editorial presidido pelo ilustre acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007) e, entre os conselheiros, José Paulo Paes (1926-1998), José de Souza Martins, Franklin Leopoldo e Silva, Telê Ancona Lopez e outros ilustres membros. Encarreguei-me de um artigo-entrevista sob o título “Tsuna Iwami – A recepção da Música Tradicional Japonesa no Brasil”. Apreende-se, através das sábias respostas, o pensamento vivo do polivalente artista japonês, mormente no que concerne ao culto da música de seu país natal no Brasil. Presentemente, ao entrar em contato com o IEB a pedir autorização para apresentar o artigo-entrevista aos leitores, gentilmente o Editor-Executivo da Revista, Pedro B. de Menezes Bolle, aquiesceu.

“O compositor e intérprete de Shakuhati, Tsuna Iwami, nasceu em Tóquio no ano de 1923, radicando-se em São Paulo em 1956. Engenheiro por profissão, o mestre Iwami teve sólida formação, estruturada na tradição da cultura musical japonesa. Ainda no Japão, tornou-se o Baikyoku V, título máximo conferido a um executante de Shakuhati de Kinko-Ryo. No Brasil, disseminou entre os discípulos brasileiros e do Exterior (principalmente pós-graduandos norte-americanos) o culto ao niponismo musical erudito do passado. Como compositor, o mestre Iwami criou obras para orquestra com solo de Shakuhati, obras para piano solo, para canto e piano e para flauta e piano, pois o autor é igualmente intérprete de flauta transversa.

Na entrevista concedida a José Eduardo Martins, o mestre Tsuna Iwami discorre a respeito da música nipônica não-erudita aqui praticada; da recepção da música erudita tradicional no Brasil; dos instrumentos japoneses; dos mestres em música que aqui aportaram; da tradição transmitida através das gerações, baseada na mais pura competência.

JEM – A imigração de outros povos para o Brasil, sobremaneira o europeu e o latino-americano, possibilitou a continuação, em terras brasileiras, de práticas folclóricas. Conjuntos se formaram e as gerações sucedâneas mantêm reuniões festivas periódicas, quando grupos executam repertório dos ascendentes, trajando-se ao estilo de origem e conservando o gestual de danças características. O que o mestre Iwami poderia nos falar sobre a música folclórica japonesa praticada no Brasil?

Tsuna Iwami – Trata-se de uma música de origem popular, contrastando com a que mencionarei durante a entrevista. É evidente que grupos pertencentes à imensa colônia japonesa pratiquem, nas datas festivas, o culto ao japonismo. Grupos formados por cantores, dançarinos e acompanhados por instrumentistas ao Shamisen e na percussão, trajados com quimonos simples, constituem o que poderíamos chamar de ‘preservação da cultura popular japonesa’. São muitos e espalhados nos centros onde a colônia se mostra mais numerosa. Cumprem, sim, um papel importante nessa sustentação dos traços fundamentais de um milenar japonismo.

JEM – Como se processou, certamente sob outra égide, a aceitação da música erudita tradicional japonesa no Brasil?

TI – A partir da década de 30, mais acentuadamente, realizou-se o processo. Um primeiro recital de música japonesa em São Paulo deu-se em 1936, realizado por Juzan Miyoshi (Shakuhati) e Miwa Miyoshi (Koto), sob os auspícios do Consulado do Japão. Datam, pois, das fronteiras dos anos 20-30 os tímidos inícios de um japonismo tradicional em São Paulo. A expansão, desde aquela época, dessa prática erudita foi lenta, reduzida durante a Segunda Grande Guerra, mas desde a década de 50, podemos afirmar, um desenvolvimento, não rápido, mas constante, está num caminho seguro.

JEM – Esta segurança de que fala o mestre Iwami seria a resultante da existência do ensino da música tradicional japonesa no Brasil? Haveria escolas ou professores isolados, ou ambos?

TI – Constatamos a existência de professores de Shakuhati (flauta de bambu), Koto (harpa horizontal de treze cordas, executada pelo intérprete munido de unha artificial ou marfim) e de Shamisen (tipo de guitarra de três cordas, tangidas pelo executante por plectro de marfim). Na verdade, não encontramos escolas dedicadas à difusão da música tradicional nipônica. Professores particulares perpetram ensinamentos a gerações definidas, pois há um perfil daquele que se dedica a este gênero de música. Os alunos nem sempre são orientais.

JEM – Quantitativamente, qual seria o número aproximado de praticantes desses instrumentos no Brasil? Tem havido difusão e expansão do japonismo tradicional musical?

TI – Só em São Paulo, aproximadamente cem pessoas tocam instrumentos de música japonesa, das quais mais ou menos setenta e cinco são brasileiros; e destes, talvez 60% de descendência nipônica. Em Belém e em Curitiba, e mais outros centros, podemos encontrar grupos numericamente menos expressivos.

JEM – No Brasil, fabricam-se instrumentos sacralizados pela cultura erudita europeia. A qualidade deles, exceção talvez única a determinados violões construídos por lutaios da maior competência, é, infelizmente, duvidosa, apesar de massacrante propaganda divulgadora. Maturação das madeiras, chapas de ferro de qualidade menor, metais não à altura de padrões internacionais dificultam a equiparação qualitativa dos instrumentos brasileiros, se submetidos às exigências de países de tecnologia de ponta. Existem instrumentos da cultura nipônica produzidos no Brasil? E qual a qualidade?

TI - O Problema é complexo. Realmente você tem razão quanto aos modelos ocidentais fabricados no Brasil. Há nítida defasagem de qualidade. Estamos experimentando, no que tange aos instrumentos japoneses, por exemplo, fabricar Shakuhati em São Paulo. As dificuldades são sempre as mesmas e se refletem na qualidade das matérias primas: bambu adequado e charão.

JEM – O escritor português Wenceslau de Moraes niponizou-se integralmente, deixando textos, como o célebre Dai-Nippon, que revelam a sua admiração profunda pelos costumes nipônicos e apontam com precisão para transformações insulares em direção à modernidade. O autor impregnou-se visceralmente, sob outro aspecto, da cultura japonesa. O olhar era aquele de um ocidental, o texto, pleno de lirismo contagiante, o amálgama da identidade plena entre Ocidente e Oriente. O mestre Iwami, radicado no Brasil há quase quarenta anos, teria sofrido o processo inverso?

TI – No que se refere ao culto da música tradicional japonesa e à minha maneira de tocar, praticamente não sofri, no Brasil, nenhuma influência. Há um enraizamento muito profundo de todo este culto milenar, difícil de ser compreendido por um ocidental. É lógico que influências sofri na minha maneira de compor. Nunca na maneira de tocar o repertório tradicional adquirido e nem na maneira de ensiná-lo.

JEM – Esta sua resposta leva-me a perguntar ao mestre Iwami se os praticantes da música tradicional japonesa, seus alunos, sofreram, na interpretação, influências da cultura musical brasileira.

TI – Praticamente nulas.

JEM – No Kasato-Maru vieram músicos que permaneceram como imigrantes? E nos anos posteriores? O mestre Iwami pode nos citar músicos instrumentistas que aqui aportaram?

TI – No Kasato-Maru não vieram músicos, pelo menos que se dedicassem exclusivamente à música. O que podemos afirmar é que alguns instrumentistas de talento foram aportando inicialmente em Santos e, posteriormente, aterrissando em aeroportos internacionais brasileiros. Citaria, por ordem cronológica, as prováveis datas de fixação em São Paulo: Kisue Hayashida (Koto, Shamisen) – 1931; Jusan Miyoshi (Shakuhati), Miwa Miyoshi (Koto e Shhamisen) 1931; Kanemiki Tokiwazu (Shamisen) – década de 30; Ryosaku Miyashita (Shakuhati) – anos 40; Shinzan Saito , Yôzan Sagara e Sôzan Yoshioka – década de 50; Sonoko Kamieda (Shamizen) – 1956; minha mãe, Tomil Iwami (Koto e Shamisen) e eu (Shakuhati) em 1956, precisamente.

JEM – Todos estes mestres citados, pertencentes provavelmente a escolas diversas, passaram às gerações, no Brasil, o conhecimento da música tradicional japonesa. Seria importante o mestre Iwami, a título de exemplo, discorrer sobre a sua própria origem como instrumentista, tão distante dos padrões ocidentais. Quais os seus ascendentes? Qual o significado exato de seu título máximo de Baikyoku V?

TI – A pergunta tem fundamento e ‘antagoniza’ essencialidades de nossas culturas. Não é fácil para um músico ocidental entender nossas longas gestações. Citaria o piano moderno, por exemplo, instrumento que se consolidou há pouco mais de um século. Dificilmente, o instrumentista ocidental, mesmo um violinista, poderia citar três gerações ascendentes de professores. O Shakuhati é um instrumento que teve origem nos séculos VII e VIII da era ocidentalmente conhecida como cristã. Sofreu transformações e o moderno Shakuhati de bambu especialíssimo, contendo cinco orifícios, data do século XVI. A moderna música para Shakuhati teve início no século XVII, com Kinko, um Iemoto ou mestre de escola, que foi o chefe do Konko-Ryo. Os seus ensinamentos permaneceram durante três gerações de discípulos. Posteriormente, tivemos a escola de Fuyo Hisamatsu, aluno da segunda geração da escola de Kinko. Após, Fûkei Kodo, discípulo de Hisamatsu, foi o seu sucessor que, por sua vez, passou os ensinamentos a Kodo II, também denominado Baikyoku I. Gerações se sucederam e eu sou o representante de toda uma tradição. Sou o Baikyoku V, assim como existe o Kodo V, mais jovem do que eu e que, após estudos em Universidades americanas, retornou ao Japão. Apesar de quase quarenta anos vividos no Brasil, ainda não elegi meu sucessor, o Baikyoku VI. Preocupa-me, a mim e ao mestre Kodo V, a unificação desse conhecimento secular. Pensamos eleger um mestre excepcional, cujo talento evidente e o caráter impoluto possam preservar a arte do Shakuhati, apreendida através dos séculos sem desvirtuamentos. Quem sabe não poderá ser um brasileiro o Baikyoku VI?”

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami, “Fragmento Cantabile” e “Estudo para a mão esquerda”, na interpretação da pianista Regina Normanha Martins:

(87) Tsuna Iwami – Fragmento Cantabile – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

(87) Tsuna Iwami – Left Hand Study – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

Entre aqueles que estudaram com Tsuna Iwami, destacaria seu principal discípulo, Danilo Baikyo Tomic, que continua ativamente a perenizar os ensinamentos do mestre, agregando ao Shakuhati novas tendências musicais. Felizmente, outros intérpretes de Shakuhati, alguns que estudaram com Tsuna Iwami, têm realizado um significativo trabalho de divulgação, igualmente incorporando ao instrumento novos caminhos repertoriais, independentemente do culto à música tradicional do Japão, coluna mestra a ser preservada. Da entrevista de 1995 ao presente, há esperanças quanto à perpetuação do Shakuhati no Brasil, com um número apreciável de praticantes.

Infelizmente, um vídeo a ter Tsuna Iwami tocando Shakuhati está com falha, sofrendo abrupta interrupção quase no início da peça executada. Inseri “Beautiful Demon”, na interpretação do multi-instrumentista norte-americano, Cornelius Boots, professor de Shakuhati:

https://www.google.com/search?q=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&oq=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&aqs=chrome..69i57j33i160l3.34119j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:25f3279e,vid:BSDKLJsWdq4

Tsuna Iwami admirava a cerâmica e realizaria em seu ateliê peças cuidadosamente elaboradas. Tive o privilégio de receber um pote com meu nome em ideograma nipônico. Faz-me lembrar de uma figura rigorosamente singular, que me privilegiou com sua amizade. Um músico a ser perenizado.

The reception to “Dai-Nippon” by Wenceslau de Moraes was great. Readers would also like to know more about the composer Tsuna Baikyoku Iwami. I transcribe an interview I conducted with him, published by the Journal of the Brazilian Studies Institute (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB) of the University of São Paulo in 1995.

O olhar do observador frente às manifestações de arte no Japão

Vai, portanto, o escritor, o poeta marinheiro,
com sua acuidade sentimental, sua excepcional sensibilidade,
seu temperamento de artista refinado,
o senso do típico e do pitoresco e, com a sinceridade que lhe é inerente,
traduzindo em páginas-retratos suas impressões
– verdadeiros instantâneos – de todo aquele mundo colorido,
lírico e heroico, ressumante de exótico saber.
Jorge Fonseca Júnior (1912-1985)
(“Wenceslau de Moraes e outras evocações”, 1980)

Neste segundo post a respeito de Dai-Nippon (Grande Japão), do escritor português Wenceslau de Moraes, abordarei as artes sob a observação arguta do autor. A diversidade artística japonesa não está em um capítulo especial. Moraes a dilui paulatinamente, fato que testemunha o apreço constante e amoroso. À medida que o contexto provoca a atenção acurada, a arte é louvada.

Fidelino de Figueiredo enumera da miniatura à grandiosidade, “cujo louvor em todos os tons é um ritornelo constante nos livros de Moraes, e a cerâmica, a porcelana, o cloisonné ou bronze porcelana, os metais, a arquitetura hidráulica, o lar japonês, modelo de ordem, de asseio, de galanteria nas suas leves paredezinhas de papel, tudo visto numa disposição de benevolência afetuosa, único preconceito da alma do nosso cicerone”.

Wenceslau de Moraes não pasteuriza a arte em conceitos estanques; antes, entende as particularidades de cada uma das manifestações. Inexiste a visão do turista, mas a do europeu que se radica no Japão e se amalgama com o que é pertinente às tradições locais. A natural inclinação de Moraes do todo ao pormenor, captando do gigantismo à essência do multum in mínimo, fá-lo entender os resultados da arte nipônica, sempre com um prazer invulgar.

Sobre a pintura, Moraes observa: “Bem o sabeis; a mãe da arte é a pintura; falar da pintura é falar de todas as artes. Havemos, pois, de falar da pintura. Mas antes, visto que não temos pressa, discorramos um pouco sobre os órgãos do artista que mais particularmente se interessam na criação de um objeto, seja um desenho, seja um bronze, seja uma porcelana, seja o que for, isto é, o olho e a mão, o olho que vê e a mão que executa”. Encanta-o a visualização, fruto do culto ao belo que a natureza oferece. Comenta: “Mas o dom assombrosamente predominante desse olhar nipônico, quando se trate da arte, e por ela sobejamente confirmado, é uma qualidade afetiva extrema, inconsciente porventura, pelos encantos da natureza, por tudo que é visível e belo, por todas as concordâncias da cor, da luz, da forma”. A História da arte renderia tributo através do tempo aos pintores Utamaro (1753-1806), Hokusai (1760-1849), Hiroshige (1797-1858), entre outros. Quanto a Katsushika Hokusai, estende-se, e o pormenoriza em precisas observações “…foi um idólatra, tendo na natureza o seu feitiço; e estudou, com o tenaz fervor de um iluminado, as mil e uma formas da verdade, todas as delícias da cor, todos os segredos da vida”. Saliente-se que a influência das estampas japonesas foi notória no impressionismo em França. Claude Debussy (1862-1918) se inspiraria na gravura “A grande onda”, de Hokusai, para o seu tríptico sinfônico “La Mer” e mantinha gravura de Utamaro emoldurada. Em “Poissons d’or”, terceira peça do segundo caderno de Images, o compositor teria como inspiração uma laca japonesa.

Em período efervescente das artes e da literatura em França, causaria admiração o traço único, sem falha, preciso, irremovível, a inexistir espaço para retoque nas criações das gravuras japonesas. Wenceslau de Moraes capta a essência da pintura nipônica. Sua interpretação, habituada anteriormente às pinturas ocidentais, se extasia frente à precisão oriental e às mensagens transmitidas. Eliminado o supérfluo, permanece esse traço que capta o instante do acontecido e a autenticidade do tema em pauta. Escreve: “Uma pintura japonesa é sempre uma invocação. Adivinha-se o trabalho do pincel, não se esforçando em reproduzir a natureza, não em ser criador, mas em traduzir a impressão persistente que nos fica do espetáculo da mesma natureza. Eu me explico melhor, exemplificando: o pincel nipônico não conhece a veleidade de criar uma rosa, o que só pode, bem pensado, fazer o Pai do Céu; prescinde de modelo, fá-la de cor; quando a traça não se preocupa em enganar as abelhas que venham esvoaçar sobre o papel em busca de mel para o seu cortiço; preocupa-se apenas com a flor, no que dela persiste mais intenso na reminiscência, pelos seus atributos dominantes; é como se dissesse que aquele pincel inteligente não pinta, pensa e recorda”.

Admira o kakemono, arte pintada ou caligrafada em longas tiras de seda, cetim ou papel, presentes nas moradas das várias classes sociais. Conservadas em rolos, amiúde são estiradas quando da visita de familiares e amigos, ornando os ambientes desprovidos de excessos. Moraes observa: “Não escapa à observação do amador a íntima preocupação de realces, de harmonias que existem entre o desenho e o mimo de coloração do tecido; há nessa coloração como que um misterioso estímulo do sentimento, predispondo para a melhor compreensão do assunto”.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Algo sutil e profundo”, a partir de poema de M.Miyamoto, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=tRgb1y0sStg

Moraes tem posições de interesse sobre a porcelana nipônica, historiando-a e, após, enaltecendo-a, apesar de críticas à industrialização. Considera que, apesar de os processos fabris terem origem na China, os japoneses se serviram da livre fantasia. Enfatiza pormenores dessa arte que “encanta pela gentileza das formas, pelo mimo nos desenhos, pelo brilho nos esmaltes. Na jarra, no vaso, na garrafa, no perfumador, no boião, o mais saltante enlevo está na doçura sugestiva das curvas, na geometria amorosa do nu, inédita, que parece inspirar-se na gracilidade suave de um braço, ou na redondeza túmida de um seio, ou na amplidão serpentina de um quadril. Depois vem a ingenuidade bucólica do desenho, nas florinhas que estrelam os fundos, nos insetos e nas aves que voejam, nos longes cariciosos da paisagem. Depois ainda é a harmonia inimitável das tintas e dos ouros, das cores inefáveis, banhadas na frescura eterna dos esmaltes”. A influência da louça japonesa na Europa não é esquecida pela pena moraesiana e, após mencionar as fábricas de Delft, na Holanda, e a produção em Saxe e Chantilly, comenta: “Estais julgando: é a moderna louça luxuosa da Europa devendo tudo ao Japão”.

Moraes enaltece as olarias japonesas, que datam dos primeiros séculos da era cristã. Escreve: “Acima da porcelana em méritos, como arte nacional, está a olaria japonesa. É neste ramo da cerâmica, no trabalho paciente das argilas, que o sentimento e a viva originalidade indígena atingem um primor adorável”. Após considerar a alta feição artística da faiança japonesa  “…profundamente nacional, mais ornamental que utilitária, amorosa da natureza, das formas animais, por vezes humorística e que é representada principalmente pelas inúmeras formas da estatueta, do boião de perfumes, da caixa de remédios, do perfumador, da floreira. Compreende-se efetivamente o que possa dar essa argila pastosa, obediente a todos os contatos, quando sujeita às mãos habilidosas, mais ligeiras, mais artísticas que se conhecem”.

Wenceslau de Moraes discorre sobre materiais como o bronze e a madeira, do grandioso à miniatura, dos Budas gigantes aos netsukês de madeira ou marfim. Impressiona-o o culto às imensas esculturas em bronze de Buda, os Daibutsus de Nara e de Kamakura.

Sobre o teatro, Moraes está atento: “O teatro japonês cultiva um naturalismo estranho, minucioso nos ínfimos detalhes, por vezes duma perfeição inconcebível. Não é o enredo, o mistério sentimental do drama que procura interessar o espectador; é o jogo físico, mecânico, que sugestiona a vista, e assim encaminha por indução o espírito a um grau de sentimentalidade individual e vaga, que borboleteia certamente em cada um em mil divagações, de que cada um se constitui o exclusivo auto; um surdo poderá compreender o drama, um cego, nunca”. Os Teatros Nô e Kabuki estão entre os mais renomados.

Ao comentar os cultos xintoísta e budista, Moraes escreve: “Insinua-se fortuitamente no Japão, pelo século VI da era cristã, a crença budista trazida da Coreia”. Acrescenta: “Os dogmas dos dois cultos acomodam-se, contemporizam-se de parte a parte”. Entre os deuses familiares está “Benten, a deusa das artes e da beleza, representada como uma formosa cortesã dedilhando numa espécie de guitarra indígena, o biwa”.  A gravura de Hônen Metamorfose da Lua não estaria a render culto a Tsukiyomi-no-Mikoto, o deus lua, um dos deuses da crença xintoísta?

Moraes não deixa de pontuar alguns instrumentos musicais, estes sob os dedos etéreos das gueixas: “Os instrumentos indígenas, onde pousa a alvura das mãos das gueixas, são o shamisen, o koto, o biwa, outros ainda lembrando a guitarra. O bandolim, a harpa; instrumentos de corda, adaptando-se assim obedientemente à intenção, ao vago, ao incompleto da trova, dos cantares”. A imaginação moraesiana viaja ao som instrumental e das vozes: “As cordas que gemem em trêmulos, soltam exclamações súbitas, acompanhando a voz em melancolias arrastadas; é a música da vida, o ramalhar das árvores, o sussurro das águas, o ciclo dos insetos e dos pássaros , o grito insólito do corvo cortando o espaço; por sugestão, adivinha-se nela o eterno enlevo dos sexos, a curva dardejante das borboletas brancas perseguindo-se sem se alcançarem, todos os dramas da simpatia e do desejo, da alma e dos sentidos, que constituem a lei da existência universal”.

Quanto à arte singela das moradas japonesas, Moraes as compara às “habitações dos chamados povos cultos nas civilizações ocidentais”. Nessa visão, compara o luxo das moradas europeias plenas de móveis e objetos, com a casa japonesa: “Para o lar japonês, entra-se deixando à porta os sapatos, como para um místico santuário; não procureis a sala, que não existe; o lar é da família e dos amigos íntimos; todos os aposentos são iguais, sem mobília, sem ornamentações, com a simples esteira de repouso sobre a qual os corpos se entendem em grupos afetuosos, bebendo chá, fumando, palestrando, espraiando o olhar pelos caprichos do jardim, pela paisagem distante: maciços verdes de arvoredo, lombadas flexuosas de colinas, espumas de cascatas, azuis serenos do céu e de águas que são, afinal, a portentosa ornamentação da casa japonesa”. Essa comparação com moradas ocidentais não evidenciaria o âmago do despojamento ao qual Wenceslau se propôs nessa japonização voluntária?

Não sendo possível abordar em dois posts, com o espaço a que  me proponho semanalmente, toda a riqueza de Dai-Nippon, que permeia uma multiplicidade de temas através de um olhar agudo e de um pensar privilegiado, recomendaria ao leitor que deseje saber mais sobre o escritor buscar preciosa bibliografia portuguesa, mas também brasileira, assim como as obras de Wenceslau de Moraes elencadas no post anterior.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Idade Madura”, a partir de poema de M.Miwa, na interpretação de J.E.M.:

(62) Tsuna Iwami – Maturity – José Eduardo Martins – piano – YouTube

In this second post about Wenceslau de Moraes’ “Dai-Nippon”, I focus on the artistic manifestations he has punctuated. The evidence of a voluntary and loving japanization is clear in Moraes, who gives Western readers a fascinating glimpse into old Japanese culture not with a tourist’s view, but that of the European who settles in Japan and adopts the local traditions.

A niponização de ilustre figura literária portuguesa

O Dai-Nippon é a explicação interpretativa
do que há de mais específico e diferencial na vida japonesa,
feita com um critério japonês,
que o admirável escritor não teve de compor laboriosamente,
por via didática,
mas que brotou espontâneo da sua simpatia amorosa
e do seu desapego do ocidentalismo.
Fidelino de Figueiredo

Em edição brasileira, publicado durante as comemorações dos 450 anos da chegada dos portugueses ao Japão (1543-1993), Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes (Rio de Janeiro, Nórdica), teve justa homenagem da comunidade portuguesa, com o apoio cultural da Academia Lusíada de Ciência, Letras e Artes (da qual fui integrante) e da Aliança Cultural Brasil-Japão. Àquela altura, ofereci recital de piano na Casa de Portugal, privilegiando obras de compositores dos três países como um dos eventos da Exposição Wenceslau de Moraes, realizada entre Novembro e Dezembro de 1993 naquela tradicional Casa.

A leitura de “Dai-Nippon” fascinou-me àquela altura, inclusive pela apresentação, o ensaio magnífico de Fidelino de Figueiredo (1888-1967), notável homem público, professor, historiador e crítico literário português. Sob o título “O homem que vendeu a sua alma”, o ensaio foi publicado em 1925 no volume “Torre de Babel”.

Recentemente, uma amiga falou-me de Wenceslau de Moraes e mostrou interesse em conhecr “Dai-Nippon”. Essa chamada fez-me reler o livro, 480 anos após o desembarque português no Japão, e a impressão durante a revisitação apenas ficou ratificada e acrescida.

Considere-se que os portugueses foram os primeiros ocidentais a aportar no Japão aos 23 de Setembro de 1543. Fernão Mendes Pinto (1509-1583), aventureiro, mercador, explorador, missionário jesuíta, apesar de lá não estar nessa data, durante vinte e um anos desembarcou em terras do Oriente, e foi o autor da célebre Peregrinação, “primeira obra do japonismo literário”, segundo Fidelino de Figueiredo. Escrita tardiamente, de memória, tantas vezes sem quaisquer apontamentos, há que se perdoar equívocos, dadas as circunstâncias. Mencioná-lo se faz necessário, mormente pelo fato de que, séculos após, Wenceslau de Moraes cultuará de maneira plena o japonismo e se lembrará do autor de Peregrinação em Dai-Nippon.

Wenceslau de Moraes foi uma figura singular que, após a formação junto à Escola Naval, esteve a serviço da Marinha de Guerra Portuguesa, período em que foram várias as suas atuações de Moçambique ao Timor, Japão, Macau. Nesta cidade foi professor no Liceu e se casou com uma chinesa, Vong-lo-Chan, com quem teria dois filhos. É nomeado cônsul em Kobe em 1898, deixando esposa e filhos em Macau. As duas japonesas com viveria sucessivamente, Ó-Yoné Fukumoto e Ko-Haru, tia e sobrinha, morrem adoecidas, o que o levou à depressão. No Japão, a sua atividade literária se intensifica e, como correspondente no Exterior para diversos periódicos, delineia lentamente sua visão como arguto observador de aspectos essenciais do país, sendo que os seus relatos, mormente quando em Tokushima, seriam bem difundidos em Portugal. Com o passar dos anos, Wenceslau de Moraes sofre transformações e se japoniza. Pratica os costumes do Japão e traja-se à maneira dos habitantes locais. Faleceu em Tokushima aos 75 anos. Monumento em Tokushima e em Kobe homenageiam o escritor. Entre suas obras, salientemos: Traços do Extremo Oriente (1895), Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905), Fernão Mendes Pinto no Japão (1920), Ó-Yoné e Ko-Haru (1923), Os serões no Japão (1926).

Daí-Nippon é obra referencial. Após abordar sucintamente a história do Japão com o olhar de um europeu, Moraes penetra no âmago das culturas do país a descreve com admiração temas relevantes, entre estes as artes em suas modalidades, costumes, afetos, arquitetura religiosa, as moradias típicas e a economia do mobiliário, as tradições enraizadas desde tempos imemoriais, as armas e o sabre perene nas lutas marciais, a mulher japonesa — essa figura feminina delicada e gentil, inúmeras vezes exaltada em sensual poética —, o chá como elo nas relações, a morte entendida sem luto.

Após aportar inúmeras vezes em terras do Ocidente e Oriente, será no Japão que encontrará a sua tebaida. A escolha pelo país, voluntária, definitiva, acentua ainda mais a determinação de mudança em direção à japonização, e o olhar do observador ao longo dos anos saberia interpretar até pormenores que os habitantes locais, imersos em suas rotinas, porventura minimizavam. Há convicção plena em suas narrativas autobiográficas.

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami (1923-2012), “O Mar”, a partir de poema de M. Miwa, na interpretação de J.E.M. (gravação em long play – 1979). :

https://www.youtube.com/watch?v=PK2qMzhu7IU

Creio necessário inserir alguns parágrafos basilares de Dai-Nippon, pois se houve, mormente após Hiroshima e Nagasaki, transformações em muitas áreas elencadas acima, outras tantas preservam tradições milenares. Há que se entender as observações de Wenceslau de Moraes sobre o Japão e seus costumes como escritas por um ocidental que, absorvendo o japonismo por inteiro, não deixou de tantas vezes, mesmo inconscientemente, inclinar-se à irresistível comparação entre duas culturas tão diferentes. É cônscio de que da estada dos portugueses pelo Japão, que se estende até meados do século XVII, “pouco ficou, mas ainda o bastante para assinalar até hoje a sua intensa influência momentânea. De monumentos, uma ou duas pontes de tosca alvenaria, galgando pela ribeira que serpeia por Nagasaki. De crenças, uma mística flor de cristianismo, que todas as matanças não lograram fazer murchar inteiramente e que, dois séculos depois, foi revelada numa tribo fiel de gente humilde, vivendo às ocultas na comunhão da mesma fé, ensinada pelos missionários aos trisavós. Na linguagem ficou uma multidão de palavras portuguesas, hoje inteiramente nacionalizadas; imagine-se a agradável surpresa de um português quando escuta esses vocábulos patrícios, proferidos tão longe da sua terra”. São muitos. A título exemplificativo, mencionemos os termos tabaco, bidro (vidro), copocatana (espada), conpeito (confeito), pan (pão), arigatô (obrigado), biôbu (biombo)…

Curiosamente, em Dai-Nippon o autor escreve que o japonês não cria, mas imita à perfeição, comentando que, da decadência da “maravilhosa originalidade artística deste povo, resulta por outro lado a noção profunda do seu intensíssimo dom imitativo, adaptador, dom que já hoje faz arrecear seriamente a egoísta Europa, diagnosticando-lhe não sei que futuro de lutas de competência, de arrojos pertinazes, de gente que muito quer e muito pode”. Após a Segunda Grande Guerra, o Japão derrotado, a criação do denominado Plano Colombo visou ratificar a influência dos Estados Unidos nos países que sofreram os efeitos da Guerra em países asiáticos, possibilitando investimentos na nação japonesa. Estou a me lembrar de que, na adolescência e juventude, nos primeiros lustros da segunda metade do século XX, era comum falar-se pejorativamente da imitação dos produtos ocidentais replicados no Japão. As décadas vindouras provaram a incrível recuperação do país e a inovação em tantas áreas. Hoje, o Japão integra o G7, grupo composto pelos países mais industrializados e com índices altos de desenvolvimento humano. É pois de interesse uma observação que Wenceslau de Moraes faz àquela altura: “No entretanto, o operário europeu envolve-se nas grandes lutas sociais, afrouxa no trabalho, estorce-se de miséria sobre a enxerga do lôbrego casebre, e em filhos inúteis prolifera… Não virá também um dia, longe sem dúvida, para a indústria nipônica bater-nos à porta, mais barata e mais perfeita do que a nossa? Ai, Inglaterra!”.

Reiteradas vezes Wenceslau de Moraes escreve sobre a mulher japonesa. Tem por ela admiração em quaisquer condições. Estende-se sobre a figura feminina. Busca desvendar seus mistérios. Mussumês, gueixas, anmas (massagistas cegas) são observadas em seus gestuais, seus passos delicados e em seus dramas (no caso, aquelas que vivem no bairro de prazeres mundanos em Yoshiwara).

No próximo post abordarei temas relacionados às artes em suas várias modalidades e ao culto às imagens de Budas gigantescos.

“Dai-Nippon (Great Japan) is a singular book and its author, Wenceslau de Moraes, a Portuguese writer and journalist, ended up adopting the country of the Rising Sun, becoming almost completely Japanese and dying there.