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Nome referencial entre os grandes pianistas do passado

Crê-se que Kempff desempenhe um papel,
quando, ao contrário, ele se abandona.
Onde outros denunciam maneirismo,
vejo esplêndido equilíbrio,
plenitude viril, sinceridade exigente
que recusa que lhe coloquem uma máscara
sobre o rosto para controlar friamente seus reflexos.
Bernard Gavoty
(“Wilhelm Kempff”– Les Grands Interprètes)

O blog havia sido publicado na madrugada de sábado, como sempre, e pela manhã encontro Marcelo na feira livre. Ouviu na íntegra o recital de Arthur Rubinstein e ficou maravilhado. A certa altura, indagou: “Ele existiu mesmo?” Trocamos rápida conversa e, ao se despedir, meu amigo sugere: “Dá para você escrever sobre outro ‘monstro’ do piano?” Regressei para casa a pensar.

Paulatinamente deverei escrever posts sobre esses incríveis intérpretes do passado. Poderia transparecer saudosismo nesses meus 81 anos. Tendo o privilégio de ter ouvido inúmeros excepcionais pianistas desde minha juventude, ao vivo e através de gravações, na época os LPs, posteriormente os CDs e a profusão de inserções futuras em aplicativos como o YouTube, mais acentuadamente entendo haver uma distinção nítida entre aquelas interpretações de um passado remoto e as atuais. Aquelas primavam pela leitura a buscar a essência da mensagem do compositor, nela entendendo-se a poesia inerente, a flexibilidade plena do discurso musical sem pirotecnia, quase sempre de maneira natural. Não havia a concorrência acirrada da atualidade a visar à performance a mais perfeita, veloz, impactante, caso específico do aperfeiçoamento técnico pianístico, mormente na escola chinesa, a conduzir a interpretação a níveis bem próximos às atividades esportivas que culminam nas Olimpíadas. Recordes esportivos têm de ser batidos, assim como os do virtuosismo pianístico. Não mencionei nesse espaço que o Diretor do Conservatório de Pequim teria dito a jornalista francês que dentro de pouco tempo nenhum pianista ocidental terá a velocidade de um colega chinês? Ouvindo essas excepcionais execuções sob o aspecto técnico, de destreza, de apetite pela virtuosidade, verifica-se que o Diretor em questão tem lá suas razões. Como não mencionou músicos na acepção, pergunta-se, e a mensagem musical em sua essencialidade? Perdurará esta frente à civilização que busca o espetáculo à maneira de uma arena esportiva? Esse tema tem sido recorrente em meus blogs, mas é sempre importante a ele retornar.

Lendo biografias e relatos de grandes intérpretes do passado, apreende-se que o amadurecimento se dava naturalmente, sem açodamento, sem traumas. “Cette Note Grave – Les années d’apprentissage d’un musicien” (Plon, Paris, 1955), do extraordinário pianista Wilhelm Kempff, traduz esse caminhar inicial, que resultaria em um dos mais sensíveis executantes de todos os tempos. Li-o nos meus anos de estudos em Paris e fundamentos do livro serviram-me para reflexões que perduram. Já o mencionei em blogs bem anteriores.

Ao longo das últimas décadas converso por vezes com jovens pianistas. Fico surpreendido pelo desinteresse por determinados aspectos essenciais de uma composição em fase de “acabamento” ou mesmo apresentada ao público. O conteúdo essencial passa tantas vezes ao largo, preocupando-se o jovem com a performance pianística como fim, mormente se ela tiver forte carga de virtuosidade. Há sempre recordes a serem batidos. Não é só em termos pátrios, mas alhures também esse fenômeno ocorre.

Nessas investidas durante noite adentro, ouvi Wilhelm Kempff, pianista alemão singular, mas cujo perfil personifica o intérprete do período, guardando-se as características individuais de cada executante. Refiro-me aos approaches desses pianistas e de seus entendimentos frente à carreira e ao público. Logicamente, a ser observada a transformação do gosto musical motivada por tantos cambiantes caminhos da modernidade.  Também assisti às suas apresentações durante minha juventude, não apenas em São Paulo, como anos após em Paris. Foi um desses “monstros sagrados” da interpretação. Estou a me lembrar de que o primeiro contato com suas interpretações veio de LPs ouvidos na minha adolescência, entre os quais aqueles em que executa Beethoven, Schubert e Liszt. Encantava-me a poesia inerente de suas apreensões da partitura. Em Paris assisti a um seu recital Schubert, retido até hoje em minhas memórias preferidas.

Qual intérprete hoje escreveria Cette Note Grave, a ter a música não como fim para a promoção individual, mas secretamente guardada no de profundis que, ao se exteriorizar, vem plena dessa essência subjetiva, a traduzir a mensagem sonora sublimada? Nesse belo livro, Kempff desvela seus primeiros anos a caminho da juventude. A música como razão essencial, a meditação sobre as criações, o órgão como instrumento praticado, principalmente nas criações de J.S.Bach nesse período de formação, moldando sua visão das partituras de tantos outros compositores a seguir. Indelével seu encontro com o grande músico, pianista e compositor Ferrucio Busoni, que o influenciaria durante a existência.

Bernard Gavoty, autor de Wilhelm Kempff (Genève-Monaco, René Kister, 1954), traça com precisão o perfil do pianista. Expressão exata do que o jovem que eu fui sentiu ao ouvi-lo algumas vezes: “Este artista ao qual fazem ressalvas por externar seus sentimentos – quando razão há para tanto! – se o leitor o conhecesse um pouco saberia que não há um homem mais introspectivo nem mais voltado ao interior da música. Nenhum mais sincero. Um músico doublé de filósofo. Ouço sua voz, ela ressoa em meus ouvidos numa pequena sala de hotel. Kempff busca as palavras, suavemente: ‘Viver música para mim foi sempre sede, fome… As vezes esqueço destas ao tocar piano… É minha segunda natureza… Só toco a música que amo, aquela que está dentro de mim, que sinto pulsar como o sangue no meu peito. A musica que amo é meu coração…’ Malgrado todos os refinamentos, a mensagem de Kempff é uma mensagem de saúde, de luz e de alegria”.

O repertório de Wilhelm Kempff, um dos mais extensos entre os pianistas, abrangeu criações de J.SBach, Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt… Kempff gravou todas as Sonatas de Schubert e de Beethoven, deste mais de uma vez, inclusive também seus Concertos para piano e orquestra. Ouvir Wilhelm Kempff é captar mensagens de um dos mais poéticos intérpretes da história do piano. Há atmosfera do sagrado, mormente nas composições mais contemplativas.

Clique para ouvir ao vivo o terceiro andamento da Sonata op. 27 nº 2, conhecida como “Sonata ao Luar”, na interpretação de Wilhem Kempff:

https://www.youtube.com/watch?v=oqSulR9Fymg

Wilhelm Kempff também se dedicaria à composição, escrevendo para vários gêneros. Assim como Franz Liszt, Ferrucio Busoni, Alexandre Siloti, Dame Myra Hess e outros, transcreveu para piano criações de J.S.Bach.

Clique para ouvir de J.S.Bach-Kempff, em transcrição para piano, o coral Awake, the Voice is Sounding, na interpretação de JEM (gravado na Capela Saint-Hilarius em Mullem, 2005):

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

Creio ter atendido ao amigo Marcelo. Por vezes dedicarei blogs a esses intérpretes do passado que não podem ser esquecidos jamais, pelo legado aos pósteros através de gravações memoráveis.

This post is about the German pianist and composer Wilhelm Kempff (1895-1991), one of the most poetic interpreters in the history of music. Unlike most modern pianists, he did not see music as a route to individual promotion; on the contrary, his pianism was introspective and unaffected, avoiding display of technique for technique’s sake. Kempff sought the essence of the composer’s message, here understood as its inherent poetry, the flexibility of the musical language without pyrotechnics and fast playing. A pianist who will not be forgotten thanks to his legacy of memorable recordings.

Tantas reflexões após o acesso ao recital de 1964!

Pede-me o senhor algumas palavras escritas à mão?
Amo a vida sem condições;
rico ou pobre, jovem ou velho, são ou doente,
ocupando papel proeminente ou como modesto espectador,
sou feliz em viver, sendo portanto humildemente reconhecido à Providência.
A música, ao ser de alguma maneira meu sexto sentido, nada falarei a respeito, mas amo as viagens, os livros, a pintura, as flores
- amo o espetáculo único e sempre mutante da vida.
Em suma, amo tudo!
Há apenas uma coisa que não amo de jeito algum, escrever.

(carta de Arthur Rubinstein a Bernard Gavoty)

As estações são como uma sinfonia deveria ser:
Quatro movimentos em harmonia uns com os outros.

Arthur Rubinstein

Como de hábito, visito o YouTube noite adentro, após findas as atividades musicais ou da escrita, a fim de ouvir recitais ou concertos de grandes intérpretes do passado. Mais e mais sou avesso às apresentações espetaculosas a cada ano em ascensão permanente. A câmara, que  tudo fixa, detém-se prioritariamente no gesto facial, nos cacoetes de intérpretes mediáticos que, munidos de extraordinária destreza, enfeitiçam público distante culturalmente daquele que frequentava recitais e concertos muitas décadas atrás. Esse fato é contundente. A presente transformação deu-se a acompanhar o crescimento vertiginoso da música pop e de outras manifestações igualmente voltadas às massas aturdidas. Encenações barulhentas e feéricas, tem moldado a mente de segmento expressivo de gerações. Fatores vários fazem com que a mídia, ávida na quantidade e no consequente lucro, lhes dê guarida. Cientes dessa mudança de postura, músicos da área denominada clássica, erudita ou de concerto mesclam-se àqueles “ídolos” do universo popular que granjearam plateias numerosas, acreditando que o contrário poderá advir. Ledo engano. O gesto e tantas vezes a indumentária provocativa podem ser um último apelo ao público de concerto subjugado a essa civilização do espetáculo. No jargão popular, batalhas serão ganhas, mas…

Em artigo publicado no Suplemento Cultural de O Estado de São Paulo (“As mortes do intérprete”, Dezembro de 1988), escrevia: “Tencionando adquirir uma obra gravada por Arthur Rubinstein nos anos 50, perguntei a respeito a um funcionário de casa especializada em Paris. Qual não foi o meu espanto ao receber como resposta que desconhecia o pianista! Indaguei-lhe ainda se trabalhava há muito tempo nessa atividade, tendo laconicamente me dito que havia seis meses se dedicava à venda de discos e fitas cassetes”. O notável pianista falecera em 1982!!! Já àquela altura, a neblina sobre figuras de intérpretes do passado glorioso se fazia sentir.

Sobre o pianista Arthur Rubinstein (1887-1982), a biografia e discografia de um dos mais importantes pianistas do século XX, judeu nascido na Polônia e bem posteriormente obtendo a nacionalidade norte-americana, está fartamente divulgada em sites da internet. Sua autobiografia, dividida em três volumes, conta a longa trajetória do lendário músico. Menino prodígio, teria desfrutado dessa condição que impactaria seus coetâneos durante uma juventude feliz, como apregoou. Diria bem mais tarde sobre essa fase: “Diziam que na juventude dividi meu tempo imparcialmente entre vinho, mulheres e música. Recuso totalmente essa afirmação e posso afirmar que 90% de meus interesses eram as mulheres”. Carreira meteórica em torno de vida social e viagens intensas. A maturidade traria o debruçamento pleno da atividade de pianista, que se prolongaria em altíssimo nível até os estertores de sua trajetória. Acompanhando suas gravações, de passado remoto até às últimas já idoso, é sensível a percepção da qualidade do intérprete em todas as etapas da existência, sendo que as derradeiras têm a aura da plenitude interpretativa.

Em uma dessas noites ouvi na íntegra recital de Arthur Rubinstein gravado em vídeo na cidade de Moscou em 1964, na Sala do Conservatório Tchaikowsky, disponível no YouTube. Tinha ele 77 anos. Recomendo ao leitor a escuta dessa magistral apresentação, assinalada em link abaixo. Na juventude assisti a recitais de Rubinstein no Teatro Municipal em São Paulo e, anos após, várias vezes em Paris. O fascínio apenas se acentuou. Estou a me lembrar da opinião de um de meus professores em Paris, o ilustre pianista e professor Jacques Février (1900-1979), amicíssimo de Rubinstein. Disse-me ele que nenhum pianista tinha a flexibilidade do discurso musical e das frases, em particular naquilo que se denomina rubato. Para o leitor leigo, a comparação com um elástico que lentamente é esticado, para a seguir voltar à sua condição inicial, pode dar uma noção do rubato, termo italiano que significa roubar o tempo para recuperá-lo após, a possibilitar à frase liberdade rítmica. Graças a meu saudoso professor José Kliass (1895-1970), amigo do ilustre pianista que o visitava quando das vindas ao Brasil nos anos 1950, a comparação do rubato a um bêbado serviu-me de orientação ao longo da vida. Dizia ele que o ébrio, ao tentar caminhar, dá passos para um lado, equilibra-se e tenta retornar ao ponto inicial e assim prossegue na sua caminhada etílica. Não obstante, não se deve confundir rubato com mau gosto nessa condução da frase, como bem afirmava Rubinstein. Frise-se a relevância da mão esquerda na manutenção adequada do rubato. Considere-se que uma das grandes virtudes do pianista polonês foi a de evitar excessos de qualquer natureza durante a execução de uma obra musical. O magistral recital mencionado é uma verdadeira aula de como interpretar Chopin na sua plena flexibilização estilística.

Algumas outras considerações se fazem necessárias sobre a performance de Rubinstein. Sua abordagem da obra dos românticos, principalmente Chopin, é mágica, etérea e sem quaisquer excessos musicais e físicos, de modo absolutamente natural. Toda a compreensão da obra, a dinâmica jamais abrupta, a técnica rigorosamente à l’aise, sem quaisquer artifícios. Não há o menor gesto supérfluo, aliás Rubinstein permanece em posição “estática” e o belo acontece. Mente-coração, teclado-transmissão. Distintamente de tantos exemplos atuais, quando o intérprete só pensa em si, unicamente no sentido de atender a apelos mediáticos, a provocar o delírio dos súditos dessa civilização do espetáculo. Idoso, nesse memorável recital Chopin em Moscou – como o fez em cerca de 6.000 récitas pelo mundo, com ou sem orquestra, assim como integrante de conjunto de câmara em repertório imenso – transmite as obras na excelência. O leitor observará a ausência absoluta do supérfluo e admirará o rigor gestual a não interferir minimamente na transmissão inefável das mensagens de Chopin. Saliente-se que ao final, entre as músicas extra-programa, Rubinstein interpreta fantasticamente Polichinelo de Villa-Lobos (1887-1959), seu amigo, assim como Henrique Oswald (1852-1931) a quem o pianista visitava quando de seus recitais no Rio de Janeiro.

https://www.youtube.com/watch?v=8K4ZwA2nQqI

Se por um lado o YouTube já conta com milhares e milhares de belas gravações ou vídeos a privilegiar a música de concerto ou erudita, fato absolutamente louvável, é de se lamentar a intromissão, durante o recital em apreço, de propaganda sonora bem acima do possível e de gosto bem discutível, a interromper abruptamente a mensagem musical excelsa de Rubinstein. Há quase treze anos tenho denunciado a derrocada cultural. Interromper uma apresentação dessa magnitude é como colocar a knockout, por parcos segundos, o ouvinte encantado com a interpretação do grande pianista ou de tantas outras existentes no aplicativo. Sim, propaganda é necessária, mas poderia estar sempre em faixa pequena e brevíssima, como habitualmente acontece. Já é um incômodo, mas tolera-se.

Quanto à primeira epígrafe, trata-se de carta endereçada a Bernard Gavoty, crítico francês do jornal Le Figaro e autor do texto de Arthur Rubinstein, da coleção Les Grands Interprètes (Genève, René Kister, 1955). Apesar de dizer que não amava escrever, tardiamente preocupou-se em redigir sua autobiografia em três volumes, originalmente publicados nos Estados Unidos (New York, Knopf) e traduzidos para o francês: Les jours de ma jeunesse (1973), Grand est la vie (1980) e Ma jeune vieillesse (1980), editados pela Robert Laffont em Paris.

My impressions after listening to Arthur Rubinstein’s recital in Moscow in 1964 on YouTube. His approach to the work of romantic composers, Chopin in special, is magical, extracting the best music of the written score. The musical language is treated in an impeccable way, his sense of rubato is unrivaled, his dynamics are never abrupt, going from pianissimo to fortissimo in a gentle manner. Sound technique without pyrotechnics and mannerisms, transmitting the composers’ musical thought in a limpid style. A masterly performance of one of the greatest pianists of the twentieth century.

O piloto-escritor por vocação imperiosa

Refiz todos os meus cálculos.
Nossa ideia é irrealizável.
Não nos resta outra coisa a fazer,
Realizá-las.
Pierre-Georges Latécoère
(fundador das Lignes Aériennes Latécoère)

Nesse segundo comentário do livro em apreço abordarei as duas atividades mais imperativas na breve existência de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Amalgamadas sem a menor possibilidade de separação, literatura e aviação fazem parte de uma maneira única de entender o mundo em que vivemos ou o universo. Essa premissa leva-nos ao O Pequeno Príncipe em seu asteroide, o mais breve dos livros de Saint-Exupéry, mas o que granjearia o maior alcance. Vislumbre estelar imaginário, passível de acalantar os almejos mais recônditos do autor.

A trajetória de Saint-Exupéry voltada à aviação remonta aos seus doze anos de idade, quando, contrariando sua mãe, reiteradas vezes vai ao campo de pouso de pequenos aeroplanos de madeira e tela em Ambérieu. Dizendo-se autorizado por sua mãe, pela primeira vez voa num avião pilotado por Gabriel Wroblewski-Salvez. O maravilhamento da “aventura” seria a origem do fascínio que o seduziria por toda a vida.

Em Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, a autora Nathalie des Vallières fixa datas precisas para o envolvimento de seu tio-avô. Vemo-lo, a partir de 1921 até a morte em 1944, basicamente engajado com a aeronáutica, como piloto e, por vezes, como dirigente. Como aviador, naqueles tempos ainda precários em termos de segurança, Saint-Exupéry sofreria vários acidentes, alguns graves. Em 1933 quase se afoga após aterrissar mal. Seria em 1935 a queda que o teria influenciado de maneira mais marcante, quando, ao tentar bater o recorde Paris-Saigon, cai com seu amigo e piloto André Prévot no deserto da Líbia. Já em 1938, ao buscar o recorde Nova-York–Terra do Fogo, sofre queda na Guatemala, ficando gravemente ferido. Em 1940 participa, pela primeira vez como piloto, da Segunda Grande Guerra, sendo atingido pela artilharia antiaérea alemã. Ao todo seriam sete acidentes, o último fatal. Poder-se-ia entender esse número como “antecipações” de progressiva “atração” pela mors certa hora incerta. Corrobora esse desenrolar a morte constante de seus amigos e companheiros.

Presente nos romances e em Citadelle, a imensidão do deserto terá forte impressão no autor. Convidado em Outubro de 1927 para a chefia do aeroporto de Cap Juby (Mauritânia), permanecerá no enclave durante um ano e meio e o convívio com o deserto ser-lhe-á vital. Durante esse período, as poucas distrações, como o xadrez, ajudam-no nas longas horas de silêncio. Período de reflexão e da compreensão da condição do homem. Acidentes aéreos no deserto e a missão de salvar companheiros vítimas de quedas e aterrissagens forçadas, ter a índole do congraçamento e dar-se amistosamente com beduínos, chegando a frequentá-los em suas tendas, escrever cercado pela imensidão do Sahara corroboram o comprometimento amoroso com o ambiente. O acidente mencionado de 1935 é relatado: “O deserto? Abordei-o um certo dia pelo coração. Durante voo em direção à Indochina, fui parar no Egito, nos confins da Líbia, preso nas areias como uma cola e pensei que iria morrer”. Estava em companhia de seu mecânico André Prevot. Durante três dias caminham sem rumo certo, sendo encontrados em estado lastimável por um beduíno. Em Terre des Hommes há a narrativa da quase tragédia. O deserto fá-lo pensar na solidão, na morte e no silêncio: “Um silêncio não se parece com outro silêncio”. Ao deixar Cap Juby sente-se aliviado.

Carta ao amigo Charles Sallés corrobora a admiração de Saint-Exupéry pelo ofício, mas também pela imensidão do deserto e pelos mouros.

“Meu velho amigo, coloque sobre a conta do clima, de uma imperdoável preguiça, de uma impossibilidade de compreender ainda tudo o que há de novo – este silêncio vergonhoso! Escrevi-lhe três ou quatro vezes e minhas cartas não seguiram. Tentava-lhe explicar e não conseguia. É algo maravilhoso e bizarro ao mesmo tempo. A cada voo dos correios, piloto dois mil quilômetros no Sahara para ir, dois mil para voltar. Milhares sobre tribos dissidentes. Imagine essa areia, sempre essa areia. E já passei uma noite, em pane, numa pequena fortaleza isolada. Amo esse isolamento, mas não sei defini-lo. E as tribos mouras e suas fisionomias me encantam. Contar-lhe-ei tudo um dia”.

Considere-se o companheirismo. Saint-Exupéry  teve-o nas figuras, alguma notáveis, ligadas à pilotagem e à navegação da Aéropostale, sucessora da Lignes Aériennes Latécoère. Verdadeiros heróis da aviação, desde a Primeira Grande Guerra tantos deles sucumbiram precocemente em acidentes. Entre eles: Jean Mermoz (1901-1936), a figura mais emblemática da história da aviação francesa; Henry Guillaumet (1902-1940), imortalizado em Terre des Hommes. Saint-Exupéry relata a epopeia do amigo que, após acidente nos Andes, caminharia durante vários dias, moribundo, até ser encontrado. Frase de Guillaumet ao piloto-escritor: “O que eu fiz, eu juro, nenhum animal teria feito”. Ao morrer Guillaumet, Saint-Exupéry se expressa: “Guillaumet morreu. Tenho a impressão de ter perdido meu melhor amigo”. Alguns outros pilotos da Aéropostale mortos tragicamente: Jean Chamsaur (1896-1931); Alexandre Collenot (1902-1936); Germain de Laguerie (1897-1930); Henry Lemaître (1894-1935); Gaston Génin (1901-1936); Marcel Reine (1901-1940); Henri Érable (1903-1936) e Léopold Gourp (1900-1926), aprisionados e mortos pelos mouros. Tantos outros sofreram quedas, mercê em parte do pioneirismo.

O pressentimento da morte se acentua ao assistir ao desenlace de amigos e colegas. Aos 30 de Julho de 1944, um dia antes de seu desaparecimento, escreve ao amigo Pierre Daloz carta que, segundo a autora de Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, Nathalie des Vallières, faz dessa missiva um testamento. Após saudações, o piloto-escritor escreve: “Faço a guerra o mais profundamente possível. Certamente sou o decano entre os pilotos de guerra do mundo. O limite de idade é de trinta anos pilotando o tipo de avião de um só lugar que eu piloto. Outro dia tive  pane de um motor a 10.000 metros de altitude sobre Annency, na exata hora em que completava quarenta e quatro anos! Enquanto sobrevoava os Alpes com a velocidade de uma tartaruga, à mercê dos caças alemães, divertia-me docemente pensando nos superpatriotas que proíbem meus livros na África do Norte. Tem graça.

Conheci tudo desde meu retorno à esquadrilha (esse retorno é um milagre). Conheci a pane, o desfalecimento pela falta de oxigênio, a perseguição dos caças inimigos e também o incêndio em voo. Não estou exagerando e me sinto muito saudável. É minha única satisfação! E também de passear, só o avião e sozinho a bordo, durante horas, sobre a França, a tirar fotografias. Tudo isso é estranho.

Aqui, estamos longe do banho de ódio, mas apesar da gentileza da esquadrilha, assim mesmo sinto tudo como um pouco da miséria humana. Não tenho ninguém, jamais, com quem convesar. No entanto, já é alguma coisa ter com quem viver. Mas, que solidão espiritual!

Se eu for abatido, não lamentarei absolutamente nada. O formigueiro futuro me espanta. E eu detesto seu aspecto robotizado. Fui feito para ser jardineiro”.

No dia 31 de Julho de 1944, o Journal de marche (da divisão 2/33 à qual Saint-Exupéry pertencia) comunicava: “Um triste acontecimento acaba de manchar a alegria que todos sentiam com a aproximação da vitória. O comandante Saint-Exupéry não regressou. Saiu às 9 horas para a Savóia, a pilotar o 223. Não regressou até às 13 horas. Os chamados pelo rádio ficaram sem resposta e os radares alertados o procuraram em vão, às 14 h 30 não havia mais esperanças de que ele pudesse estar voando”.

Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, carinhosa e criteriosamente escrito pela sua sobrinha-neta, Nathalie des Vallières, através de rica documentação faz com que o leitor compreenda as várias virtudes do notável piloto-escritor.

Seus livros Courrier Sud (1929), Vol de Nuit (1931), Terre des Hommes (1939) e Pilote de Guerre (1942) evidenciam a sublimação do homem diante de uma das mais fatídicas profissões do período, seja como piloto a transportar correspondências e atravessando oceanos e continentes, seja durante as duas Grandes Guerras, quando a morte estrava sempre à espreita. No pós-guerra, os avanços tecnológicos, tornando a aviação muitíssimo mais segura, apenas dimensionam a naturalidade e coragem com que os pilotos de outrora, heróis na acepção, enfrentavam o destino.

This is the second post about the book  “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons.  A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being.