Tantas reflexões após o acesso ao recital de 1964!

Pede-me o senhor algumas palavras escritas à mão?
Amo a vida sem condições;
rico ou pobre, jovem ou velho, são ou doente,
ocupando papel proeminente ou como modesto espectador,
sou feliz em viver, sendo portanto humildemente reconhecido à Providência.
A música, ao ser de alguma maneira meu sexto sentido, nada falarei a respeito, mas amo as viagens, os livros, a pintura, as flores
- amo o espetáculo único e sempre mutante da vida.
Em suma, amo tudo!
Há apenas uma coisa que não amo de jeito algum, escrever.

(carta de Arthur Rubinstein a Bernard Gavoty)

As estações são como uma sinfonia deveria ser:
Quatro movimentos em harmonia uns com os outros.

Arthur Rubinstein

Como de hábito, visito o YouTube noite adentro, após findas as atividades musicais ou da escrita, a fim de ouvir recitais ou concertos de grandes intérpretes do passado. Mais e mais sou avesso às apresentações espetaculosas a cada ano em ascensão permanente. A câmara, que  tudo fixa, detém-se prioritariamente no gesto facial, nos cacoetes de intérpretes mediáticos que, munidos de extraordinária destreza, enfeitiçam público distante culturalmente daquele que frequentava recitais e concertos muitas décadas atrás. Esse fato é contundente. A presente transformação deu-se a acompanhar o crescimento vertiginoso da música pop e de outras manifestações igualmente voltadas às massas aturdidas. Encenações barulhentas e feéricas, tem moldado a mente de segmento expressivo de gerações. Fatores vários fazem com que a mídia, ávida na quantidade e no consequente lucro, lhes dê guarida. Cientes dessa mudança de postura, músicos da área denominada clássica, erudita ou de concerto mesclam-se àqueles “ídolos” do universo popular que granjearam plateias numerosas, acreditando que o contrário poderá advir. Ledo engano. O gesto e tantas vezes a indumentária provocativa podem ser um último apelo ao público de concerto subjugado a essa civilização do espetáculo. No jargão popular, batalhas serão ganhas, mas…

Em artigo publicado no Suplemento Cultural de O Estado de São Paulo (“As mortes do intérprete”, Dezembro de 1988), escrevia: “Tencionando adquirir uma obra gravada por Arthur Rubinstein nos anos 50, perguntei a respeito a um funcionário de casa especializada em Paris. Qual não foi o meu espanto ao receber como resposta que desconhecia o pianista! Indaguei-lhe ainda se trabalhava há muito tempo nessa atividade, tendo laconicamente me dito que havia seis meses se dedicava à venda de discos e fitas cassetes”. O notável pianista falecera em 1982!!! Já àquela altura, a neblina sobre figuras de intérpretes do passado glorioso se fazia sentir.

Sobre o pianista Arthur Rubinstein (1887-1982), a biografia e discografia de um dos mais importantes pianistas do século XX, judeu nascido na Polônia e bem posteriormente obtendo a nacionalidade norte-americana, está fartamente divulgada em sites da internet. Sua autobiografia, dividida em três volumes, conta a longa trajetória do lendário músico. Menino prodígio, teria desfrutado dessa condição que impactaria seus coetâneos durante uma juventude feliz, como apregoou. Diria bem mais tarde sobre essa fase: “Diziam que na juventude dividi meu tempo imparcialmente entre vinho, mulheres e música. Recuso totalmente essa afirmação e posso afirmar que 90% de meus interesses eram as mulheres”. Carreira meteórica em torno de vida social e viagens intensas. A maturidade traria o debruçamento pleno da atividade de pianista, que se prolongaria em altíssimo nível até os estertores de sua trajetória. Acompanhando suas gravações, de passado remoto até às últimas já idoso, é sensível a percepção da qualidade do intérprete em todas as etapas da existência, sendo que as derradeiras têm a aura da plenitude interpretativa.

Em uma dessas noites ouvi na íntegra recital de Arthur Rubinstein gravado em vídeo na cidade de Moscou em 1964, na Sala do Conservatório Tchaikowsky, disponível no YouTube. Tinha ele 77 anos. Recomendo ao leitor a escuta dessa magistral apresentação, assinalada em link abaixo. Na juventude assisti a recitais de Rubinstein no Teatro Municipal em São Paulo e, anos após, várias vezes em Paris. O fascínio apenas se acentuou. Estou a me lembrar da opinião de um de meus professores em Paris, o ilustre pianista e professor Jacques Février (1900-1979), amicíssimo de Rubinstein. Disse-me ele que nenhum pianista tinha a flexibilidade do discurso musical e das frases, em particular naquilo que se denomina rubato. Para o leitor leigo, a comparação com um elástico que lentamente é esticado, para a seguir voltar à sua condição inicial, pode dar uma noção do rubato, termo italiano que significa roubar o tempo para recuperá-lo após, a possibilitar à frase liberdade rítmica. Graças a meu saudoso professor José Kliass (1895-1970), amigo do ilustre pianista que o visitava quando das vindas ao Brasil nos anos 1950, a comparação do rubato a um bêbado serviu-me de orientação ao longo da vida. Dizia ele que o ébrio, ao tentar caminhar, dá passos para um lado, equilibra-se e tenta retornar ao ponto inicial e assim prossegue na sua caminhada etílica. Não obstante, não se deve confundir rubato com mau gosto nessa condução da frase, como bem afirmava Rubinstein. Frise-se a relevância da mão esquerda na manutenção adequada do rubato. Considere-se que uma das grandes virtudes do pianista polonês foi a de evitar excessos de qualquer natureza durante a execução de uma obra musical. O magistral recital mencionado é uma verdadeira aula de como interpretar Chopin na sua plena flexibilização estilística.

Algumas outras considerações se fazem necessárias sobre a performance de Rubinstein. Sua abordagem da obra dos românticos, principalmente Chopin, é mágica, etérea e sem quaisquer excessos musicais e físicos, de modo absolutamente natural. Toda a compreensão da obra, a dinâmica jamais abrupta, a técnica rigorosamente à l’aise, sem quaisquer artifícios. Não há o menor gesto supérfluo, aliás Rubinstein permanece em posição “estática” e o belo acontece. Mente-coração, teclado-transmissão. Distintamente de tantos exemplos atuais, quando o intérprete só pensa em si, unicamente no sentido de atender a apelos mediáticos, a provocar o delírio dos súditos dessa civilização do espetáculo. Idoso, nesse memorável recital Chopin em Moscou – como o fez em cerca de 6.000 récitas pelo mundo, com ou sem orquestra, assim como integrante de conjunto de câmara em repertório imenso – transmite as obras na excelência. O leitor observará a ausência absoluta do supérfluo e admirará o rigor gestual a não interferir minimamente na transmissão inefável das mensagens de Chopin. Saliente-se que ao final, entre as músicas extra-programa, Rubinstein interpreta fantasticamente Polichinelo de Villa-Lobos (1887-1959), seu amigo, assim como Henrique Oswald (1852-1931) a quem o pianista visitava quando de seus recitais no Rio de Janeiro.

https://www.youtube.com/watch?v=8K4ZwA2nQqI

Se por um lado o YouTube já conta com milhares e milhares de belas gravações ou vídeos a privilegiar a música de concerto ou erudita, fato absolutamente louvável, é de se lamentar a intromissão, durante o recital em apreço, de propaganda sonora bem acima do possível e de gosto bem discutível, a interromper abruptamente a mensagem musical excelsa de Rubinstein. Há quase treze anos tenho denunciado a derrocada cultural. Interromper uma apresentação dessa magnitude é como colocar a knockout, por parcos segundos, o ouvinte encantado com a interpretação do grande pianista ou de tantas outras existentes no aplicativo. Sim, propaganda é necessária, mas poderia estar sempre em faixa pequena e brevíssima, como habitualmente acontece. Já é um incômodo, mas tolera-se.

Quanto à primeira epígrafe, trata-se de carta endereçada a Bernard Gavoty, crítico francês do jornal Le Figaro e autor do texto de Arthur Rubinstein, da coleção Les Grands Interprètes (Genève, René Kister, 1955). Apesar de dizer que não amava escrever, tardiamente preocupou-se em redigir sua autobiografia em três volumes, originalmente publicados nos Estados Unidos (New York, Knopf) e traduzidos para o francês: Les jours de ma jeunesse (1973), Grand est la vie (1980) e Ma jeune vieillesse (1980), editados pela Robert Laffont em Paris.

My impressions after listening to Arthur Rubinstein’s recital in Moscow in 1964 on YouTube. His approach to the work of romantic composers, Chopin in special, is magical, extracting the best music of the written score. The musical language is treated in an impeccable way, his sense of rubato is unrivaled, his dynamics are never abrupt, going from pianissimo to fortissimo in a gentle manner. Sound technique without pyrotechnics and mannerisms, transmitting the composers’ musical thought in a limpid style. A masterly performance of one of the greatest pianists of the twentieth century.