Cidade que Cultua a Música

Clique para ampliar.

Goiânia nasceu para ser capital,
nasceu sem infância histórica,
sem adolescência interior,
madura demais para tão pouco tempo de criação.

Nasr Fayad Chaul

Há mais de duas décadas visito Goiânia, não com a frequência que desejaria, mas sempre com imensa alegria. Rever amigos e sentir em pleno Planalto Central uma cidade pujante em seus 76 anos de existência. Realmente uma urbe agradável. Seus belos parques causam forte impressão. Dei muitos recitais ao longo dos anos. Cursos de piano, conferências e participação em bancas integraram-me ao convívio singular goianiense. A cidade faz parte de meu universo de afeto. Muitos foram os músicos de qualidade que conheci em Goiânia e que estão a batalhar pela causa. Mencionaria, como baluarte da sólida escola pianística goianiense, a saudosa amiga Belkiss Carneiro de Mendonça, formadora de gerações de bons pianistas e professores, entre os quais Glacy Antunes de Oliveira, que se destaca com produção relevante.
Fui convidado pela dedicada Professora Gyovana Carneiro, da Universidade Federal de Goiás e uma das organizadoras da série Concertos na Cidade. Juntamente com Ana Flávia Frazão, outra competente Professora da mesma Instituição, também da nova geração, tem conduzido uma bela programação, a contar com as parcerias da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e do Centro Educacional SESC Cidadania. Recital, conferência e também participação como membro de júri de Concurso de Jovens Talentos da EMAC 2009 preencheram minha semana no começo de Novembro.
O recital se deu no ótimo Auditório do SESC com um público entusiasta, o que contagiou o intérprete. A conferência, no Auditório da EMAC-UFG, impressionou-me pela qualidade das perguntas de professores e alunos, quando dos debates. O Concurso fez-me pensar. Só aceitei participar como jurado por saber que não haveria qualquer pressão, tão comum em outros certames do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Fiquei deveras feliz ao ouvir jovens talentosos e dedicados buscando realização através da música de concerto. Juventude sadia, estudiosa. Ouvimos belas vocações. Fui incumbido de dar os resultados. Conversei em público com os candidatos. Frisei com veemência que todos eram vencedores, pois subir em um palco diante de júri e realizar provas a contento requerem não apenas esforço, como amor, dedicação, disciplina e coragem. Não há vencidos. O resultado, infelizmente, tem de proclamar os mais acurados desempenhos.
Aproveitei umas poucas horas de uma tarde que intercalava calor e chuva para correr 7,5km no exterior do belíssimo parque Areião, percurso a contemplar longas descidas e subidas. Uma felicidade. Tinha de me preparar para a Maratona de Revezamento em São Paulo.
Dois importantes jornais da cidade entrevistaram-me: Diário da Manhã (Aline Mil) e O Popular (Edson Wander). As matérias foram publicadas nos dias 3 e 4 de Novembro, respectivamente. Pedi a autorização, que me foi concedida gentilmente pelos órgãos de imprensa, e reproduzo nesse post as entrevistas na íntegra.

Clique para ampliar.

Diário da Manhã (3 de Novembro de 2009)

Pergunta: O projeto Concertos da Cidade é voltado para um público que não tem o costume de apreciar a música clássica ou nunca entrou em contato com esse nicho da arte. Como você enxerga essa inserção da música clássica no dia-a-dia do brasileiro? Nós caminhamos para uma maior difusão desse tipo de trabalho no país ou estamos cada vez mais longe disso? Resposta: É fundamental (a inserção da música erudita no dia-a-dia do brasileiro). Há um decréscimo progressivo da música clássica, dita de concerto, junto às massas. Fatores múltiplos como elitismo, propagação desmesurada da música de alto consumo, como rock e seus derivantes, sertaneja em todos os níveis e muitas outras manifestações. Diria que a música erudita, clássica ou de concerto tem a magia da perenidade – quando qualitativa – e, por não ser descartável, pode proporcionar ao homem a reflexão e a apreciação do belo, que tem tantas outras ligações com o aperfeiçoamento individual.

P:Você já viajou bastante, estudou fora e se apresentou em vários lugares. Como funciona essa difusão da música clássica lá fora? R: Há lá fora e lá fora. A gradação depende do lugar onde há a apresentação. Creio que o respeito que se tem ao cidadão em todos os níveis, desde o cuidado dos governos quanto à saúde, à educação e à segurança, tenha influência decisiva. Faz parte dos costumes de muitos países cultuar o passado, seja através da conservação dos museus e dos logradouros históricos, seja na preservação das culturas. Para a música, o intérprete é o elo que transporta a criação do compositor ao público. Divulga-se e preserva-se a tradição em tantos países. Ir a um concerto tem essa feliz rotina que se encontra em outras ações, como ir à missa, a um passeio, conviver com a família e com os amigos. Faz parte dos costumes e isso é salutar.

P: Dos visitados e conhecidos, em qual país o senhor mais admirou o tratamento e a valorização dada à música erudita. R: Todos nós elegemos nossas cidades e países. Faz parte da natureza humana. Tenho especial afeto por Portugal, Bélgica, França, Bulgária, Romênia… Diria que já visitei dezenas de vezes Portugal, sempre para recitais ou conferências. Sou um admirador incondicional da música erudita portuguesa, do barroco à contemporaneidade. Tantas outras vezes estive na Bélgica para apresentações e gravações, todas realizadas na mágica capela de São Hilário em Mullem, no coração da região flamenga. Data do século XI e, dos 20 CDs que gravei no Exterior, 15 foram naquela bela capela. A França está enraizada através de minha formação com grandes mestres. Mantenho relação profunda com Paris, mercê de meu trabalho relacionado a Claude Debussy e a Jean-Philippe Rameau, compositores extraordinários.

P: Onde o sr. se sente mais a vontade, nos grandes palcos ou nas apresentações mais reservadas e com produção mais tranquila, como essa que vai ser feita em Goiânia? R: Desde meados dos anos 90 estou mais ligado às gravações. Prefiro-as à apresentação pública. É um ledo engano pensar que microfones não captam a alma do intérprete. Tudo está lá. Aos 71 anos dirijo-me à idade da síntese e a gravação tem a magia de registrar o que realmente sinto e penso. Sim, o palco é importante, mas pode tantas vezes representar o culto ao holofote. Sob outro aspecto, desde os anos 80 me apresento em Goiânia. Faz parte de meu universo de afeto.

O Popular (4 de Novembro de 2009)

Pergunta: O que pesa mais na hora de escolher o repertório de seus concertos? Resposta: Habitualmente, o intérprete herda repertório sacralizado. Se considerarmos o amplo leque a abranger as salas de concerto em países que acatam a música denominada clássica ou erudita, verificamos que uma parte do repertório, bem menor do que a ponta de um iceberg, é apresentada em público. Ousaria dizer que não ultrapassa um dígito o percentual do qualitativo apresentado para as platéias ávidas por ouvir sempre as mesmas obras e, de preferência, os mesmos intérpretes. Até os 30 e tais anos aprendi e toquei muito o repertório super tradicional, importantíssimo para a formação de todo pianista. Mas, a uma certa altura, parei de tocar por três anos. Ao retornar, em fins dos anos 60, a escolha estava feita. Só estudaria aquilo de que gostasse e um imenso universo se abriu.

P: Há uma crítica frequente de que nossas escolas pouco estudam e executam os compositores brasileiros. O senhor comunga dessa visão? R: Não é bem assim. Toca-se sempre as mesmas obras, de Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri e tantos outros. Mas toca-se. Não há a vontade por parte de tantos professores de sondar o inusitado, e ele existe. Estou a me lembrar de Henrique Oswald, o nosso grande compositor romântico. Quando iniciei os meus estudos relativos à sua obra e à sua vida em 1978, tocava-se dele para piano duas ou três peças apenas. Isso é fato. Minha tese de doutorado foi sobre Oswald, no longínquo 1988. Gravei cinco LPs no Brasil e três CDs no Exterior contendo expressiva parcela de sua obra de câmara e para piano solo. Presentemente, mais de uma dezena de teses e gravações esparsas estão a apontar para um caminho que deu certo.

P: O senhor se aposentou na USP, mas há ainda alguma relação extemporânea com a universidade ou outras universidades? R: Tenho ainda um orientando, que defenderá sua dissertação de mestrado, e três alunos de graduação. Por motivos pessoais, após a compulsória dou as aulas em minha casa e no fim do semestre repasso as notas à secretaria. Brevemente estarei totalmente sem relação com a Universidade de São Paulo. Convites recebo, como o presente, mas raríssimos. No Exterior não houve a menor descontinuidade, e continuo a tocar e dar palestras em Universidades como em Évora, Coimbra, Minho em Portugal, Sorbonne em França e outras salas de concerto da Europa. Se tenho artigos a escrever para o Exterior para revistas e livros arbitrados, sinto-me, sob outro aspecto, liberto das amarras, tantas vezes inócuas, do jargão acadêmico. Meu blog semanal, ininterruptamente escrito desde Março de 2007, é prova.

P: Seu site é uma iniciativa que destoa da relação que os artistas do meio erudito têm com a tecnologia, não? R: Estava na antecâmara da aposentadoria. Hoje, como a música, o blog tem sido respiração. Curiosamente, os temas e desenvolvimentos surgem quando corro pelas ruas três vezes por semana. Já participei de dez provas oficiais, inclusive da São Silvestre. Deverei chegar em São Paulo no sábado à noite e já às seis da manhã estarei em Interlagos para a Maratona de Revezamento. Nossa equipe tem o sugestivo nome TA LENTOS. Já estou inscrito para a próxima São Silvestre em seu percurso de 15km.

P: O senhor mantém ainda seu programa de rádio? R: De 1993 até 2004 fui o coordenador de Tempo de Concerto, da Rádio USP-FM. Quando acometido de um câncer com prognósticos sombrios passei a coordenação ao grande violonista e professor Edelton Gloeden, dileto e fiel amigo. Continuei a apresentar contudo meu programa. Meses atrás, sentimos pressões quanto à programação, que apresentou não apenas infindável coleção de CDs inéditos como entrevistas extraordinárias durante 16 anos. Pedimos o desligamento. Foi tudo. Havia sim interação e o público escrevia-nos, o que resultava em forte estímulo. Mas há os tempos do Eclesiastes. Quanto ao público, está a haver diminuição. Diria natural, devido à estrondosa ascensão de outras manifestações “musicais”.

P: Acha que o impacto das novas tecnologias (o MP3 em especial) sobre o consumo da música de concerto é igual ao da música popular? R: Diria, outro tipo de impacto. Ajudará contudo a divulgação maior da música de concerto.

P: Em seu blog, o senhor citou o pianista Oscar Levant, dizendo que na guerra das vaidades do meio gostava mais de ser considerado segundo melhor pianista que o melhor. Quem o senhor acha o melhor “segundo pianista” brasileiro hoje? R: O drama é o holofote. Na medida que ele se torna o epicentro, nada a fazer. Pode o intérprete ser hábil virtuose, o público incensar, mas e a música, onde ficaria em sua mente? Acredito que desde que apenas o compositor a ser interpretado seja a essência, o pianista, no caso, deixa de preocupar-se com ser ou não “o melhor”. A arte pianística não pode ser julgada objetivamente, como no caso do atletismo. A mídia e os empresários podem induzir o público a entender quais os melhores. Todavia, se não houver a plena identificação com a profundidade musical, haverá sempre uma lacuna, mesmo que salas fiquem repletas e luzes iluminem mais acentuadamente determinados músicos. Sinceridade e fidelidade relacionadas à música. Poderia acrescentar que, fora desses parâmetros, vive-se na ilusão. E a ilusão é a aparência da verdade.

P: E os novos projetos? há novas gravações em vista? concertos fora do país, publicações etc.? R: Jean Philippe Rameau é um imenso compositor. Gravei na Bulgária a sua obra completa para teclado, que foi lançada em duplo CD na Bélgica, pelo selo De Rode Pomp. Dentro de alguns dias haverá o lançamento desse álbum em São Paulo pela Clássicos Editorial. Dias após será a vez de meu segundo livro de textos publicados no blog: Crônicas de um Observador (II). Até 2012 tenho apresentações, gravações e atividades musicais na Bélgica, Portugal e em França. Os projetos surgem. Aos 71 anos, tenho sempre esperanças.

The city of Goiânia, in the Central-West of Brazil, is the capital of the state of Goiás. It is only 76 years old, with plenty of green areas and intense musical life. I’ve been playing regularly in Goiânia for the last 20 years and have strong bonds of affection with the city. In this post I give an account of my last visit two weeks ago for a recital, a talk to students of the Universidade Federal de Goiás (UFG) and to take part, as member of the jury, of the New Talents Competition – 2009 of EMAC (School of Music and Performing Arts of UFG). I also transcribe the interviews I gave for two of the major newspapers of Goiânia.

Origem de Fascinante Envolvimento

Clique para ampliar.

Enquanto Rameau
não ocupar o lugar ao qual tem direito
entre os maiores mestres,
a história da Música do século XVIII e
através dos séculos não terá sua total orientação.

Georges Migot

Ao mencionarmos Rameau a muitos frequentadores de concertos em nossa cidade, a grande maioria sabe de sua existência e pode até lembrar-se de uma única peça para teclado, Tambourin, que ainda é dedilhada em conservatórios. Não se produz Rameau em nossas salas. E de pensar que sua importância para a ópera tem a dimensão daqueles grandes compositores do século XIX eternamente interpretados. Sempre os mesmos. O autor da epígrafe, compositor de méritos, observaria, referindo-se ao teatro sinfônico e lírico dos séculos XVIII, XIX e XX: “O inovador foi incontestavelmente Rameau ao renovar a concepção da harmonia, mas a obedecer à mais perfeita organização dos segmentos”. O Traité de L’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels, magistral livro em que o teórico Rameau fixa as bases da harmonia, teria influência decisiva sobre as estruturas musicais até o alvorecer do século XX. Claude Debussy, admirador incondicional do compositor, escreveria: “Rameau mostra o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna; e falhou, talvez, ao escrever suas teorias antes de compor as óperas, pois seus contemporâneos acharam ocasião para concluir a inexistência de toda a emoção em sua música”. E nesse ponto preciso reside toda a apreciação pública que persiste, ainda, em entendê-lo preferencialmente como teórico. Debruçar-se sobre o extenso catálogo de Rameau revelará um dos mais líricos mestres da história da Música. Mas, necessário se faz ouvir suas obras, apresentá-las nos teatros e nas salas de concerto. Estaria propenso o Sistema a mudar conceitos?
No post anterior mencionei o descortino que se abriu à pianista chinesa Zhu Xiao-Mei ao conhecer as Variações Goldberg, de J.S.Bach: “foi o encontro musical de minha vida.” Esse “estalo”, lembrando-me do Padre Antônio Vieira, acontece e, quando com ele nos defrontamos, a revelação se dá.
Em 1967 completava três anos sem me aproximar do piano por decisão pessoal, a buscar entender o possível sentido da música em minha existência. Ao regressar da França após anos a estudar em Paris, sentia que os programas das temporadas musicais se apresentavam tradicionais sob o aspecto repertorial e os primeiros passos da música na universidade eram ainda tênues. Casei-me e, para a sobrevivência digna, dediquei-me a outra área, comercial, onde permaneci longos anos. Ao visitar minha saudosa prima Lourdes Gandra em Ribeirão Preto durante o sepulcral silêncio sonoro que perdurava por três anos, encontrei-a a preparar o jantar. Após congraçamento sensível pediu-me para que fosse até seu estúdio, a fim de verificar alterações que fizera. Lourdes era dedicada professora de piano. Em sua biblioteca havia uma quantidade de pocket books contendo partituras fundamentais. Peguei com curiosidade a obra completa de Jean-Philippe Rameau. Sentei-me em frente ao piano e comecei a ler. Algo extraordinário se passou a partir do momento em que meus olhos e dedos liam e percorriam o Prélude do 1er Livre de Pièces de Clavecin (1706). O arrojo, a noção maior da dissonância – grande ousadia -, a construção excepcional do compositor de gênio em seus 23 anos de idade subjugaram-me. Na minha juventude já ficara encantado com a magistral interpretação das criações de Rameau pela excelsa pianista Marcelle Meyer (vide Marcelle Meyer 1897-1958 – A Redescoberta Merecida, 06/03/07). Dedilhei outras peças e, após o jantar, percorri o trajeto até o hotel e custei a dormir. Algo confuso ocorria, dizendo-me que jamais deveria ter parado. Só mais tarde senti que foi necessária a interrupção, a fim de que dúvidas não mais pairassem. O interregno, hoje entendido benéfico, fez com que o obstáculo maior referente à eterna repetição repertorial fosse enfim transposto. Doravante escolheria aquilo de que gostasse, quase sempre a preferenciar o qualitativo inusitado. Aquela pequena parcela de uma ponta do iceberg, friso, diminuta porção, eternamente sacralizada e repetida, poderia ser visitada, mas distante estaria de meus objetivos futuros. Quando frequentada, atenderia a projeto temático individual. E assim se deu. Essa opção rigorosamente pessoal distanciou-me de empresários e de determinadas programações rotineiras. Na realidade, cada intérprete sabe o que decidir, assim deveria ser, ao menos.
Ao retornar aos meus estudos a visar a edificação de algumas integrais, pontificou inicialmente Jean-Philippe Rameau, a chama que me indicou o caminho. Diria, o “estalo” de minha vida musical. A função de representante comercial deixada há tantas décadas dava-me tempo suficiente, àquela altura, para os estudos pianísticos e a leitura de incontáveis tratados e livros sobre música. Diria que foi uma das mais importantes fases de minha vida quanto ao aprofundamento voluntário e solitário sob a égide da Música e da Cultura. Estou a me lembrar que aos 24 anos, prestes a regressar ao Brasil, temeroso, perguntei à minha professora, a lendária Marguerite Long, sobre o meu incerto futuro pianístico. Colocou sua mão sobre meu ombro e disse que o que aprendera naqueles anos, sem quase nenhum contato com o Brasil, a não ser as cartas familiares semanais, dava a ela a certeza de que a mensagem musical fora transmitida num amplo leque repertorial e sobretudo estilístico, competindo só a mim o desenvolvimento em meu país. Assim se deu.

Clique para ampliar.

Estudava a obra para teclado de Rameau e lia com respeito seus tratados teóricos. A insistência de Rameau quanto ao contributo imenso das fundamentais, sons de sustentação, foi determinante para a minha concepção interpretativa da obra do Mestre de Dijon e do repertório pianístico como um todo. A grande revelação que foi a obra para teclado do grande compositor surtiria o primeiro efeito em 1971, quando apresentei a integral em dois recitais no Auditório Itália, em São Paulo. O saudoso amigo e sensível pintor Theodoro Meirelles captaria, em desenho, um instante de uma das récitas. Em 1983, ano do tricentenário de nascimento de Rameau, apresentei novamente a obra completa para teclado na Temporada da Sociedade de Cultura Artística. Outros tempos aqueles do saudoso Alberto Soares de Almeida, entusiasta planejador das temporadas da tradicional Sociedade. Em Lisboa, no belo Teatro São Luiz, a integral seria repetida e constou no catálogo de efemérides do Ministério da Cultura da França.

Clique para ampliar.

Estava a gravar em Sófia no ano de 1996 um CD a homenagear Villa-Lobos e tributos a ele prestados por vários importantes compositores do Brasil e do Exterior. Num dos intervalos da gravação na magnífica Sala Bulgária, no isolamento quase que absoluto, toquei por puro prazer várias peças de Rameau. Sem que eu soubesse, Heiner Stadler e o saudoso Athanas Bainov, que cuidavam do registro Villa-Lobos, estavam a ouvir na cabine de som. Veio o convite para a gravação da integral que se realizou em 1997 com o apoio decisivo de meu querido irmão João Carlos. Bainov impressionar-se-ia com os 5.000 e tantos mais ornamentos contidos nessa criação de período monárquico e magnificente! Para a realização da ornamentação Rameau criou uma tabela, a visar, sua resolução precisa. Apenas em 2001 seria lançado pela De Rode Pomp na Bélgica o álbum a conter os dois CDs dedicados à integral de Jean-Philippe Rameau para teclado. O ilustre François Lesure (1923-2001) aconselhou-me a incorporar à gravação o que de mais significativo existia nas transcrições que o autor realizou de sua ópera-ballet Les Indes Galantes, entre as quais a Ouverture e a magnífica Chaconne.
É com imenso gosto que verifico a acolhida da Clássicos Editorial para com essa gravação da obra de Jean-Philippe Rameau para teclado. A apresentação de algumas de suas extraordinárias criações será no recital do dia 21 deste mês na sala de câmara da Sala São Paulo, antes da sessão de autógrafos. Revisitar Rameau tem um significado de catarse. Retorno ao Grande Mestre, como aquele que entende estar diante de um iluminado. É pena que a repetição repertorial persista em nossas salas de concerto, os mesmos autores sempre ouvidos em suas obras mais conhecidas – outra ponta de iceberg – e a permanecerem como opção básica para intérpretes. Nada a fazer, pois as mentes deveriam ser trabalhadas.
O texto do encarte dos CDs Rameau já está à disposição do leitor no item Essays de meu site. Inclui a significativa apresentação de François Lesure, a explicar que não há mais nenhum sentido no debate cravo-piano. No seu entender, o que importa é o estilo do intérprete.

Clique para ampliar.

O post sobre Rameau, devido ao lançamento dos CDs neste 21 de Novembro, manteve numa lista de espera outros textos que sairão em momentos defasados. Estão eles no meu baú mental. Contudo, o passar do tempo equalizará todos os temas, pois importa a intenção deste que insiste em escrever ininterruptamente todas as semanas, a entender o ato uma respiração. A experiência em Goiás durante uma semana intensamente musical seguida pela Maratona de Revezamento no lendário autódromo de Interlagos, Santa Cecilia sob o olhar terno vertido em conto por Idalete Giga e mais o artista da Hiper Super-Ação, Evilásio Cândido, estarão a fluir como as águas que descem os rios.

Clique nos links para ouvir três peças de Jean-Philippe Rameau constantes dos CDs a serem lançados:

Prélude
Air pour Borée et la Rose
Gavotte et doubles

On 21 November my double album with the complete keyboard works of J.P. Rameau will be released in São Paulo. This post focus on the origin of my interest in Rameau’s works. By clicking the links below readers may listen to 3 pieces of the album, including the sober and extraordinary Prélude (1706), the root of my fascination with the composer.

A Pianista Zhu Xiao-Mei e os Segredos Desvelados

Clique para ampliar.

Meus relacionamento com as pessoas eram puramente
animais, automáticos, maquinais…
Sim, eram de alguma maneira histórias de animais !
Que me compreendam hoje,
pois não me é mais possível contar todo o meu passado filosoficamente,
olhando do alto, com serenidade,
os bons velhos tempos de horror e de absurdos.
Agradeço ao céu ter-me tirado do inferno,
como se fosse o desenho indecifrável da Providência.

György Cziffra

Trabalha-se a argila para se fazer vasos,
mas é do vazio de seu interior
que depende o seu uso.

Lao-Tzé

Quantos não foram os artistas, escritores, intelectuais que viveram as situações as mais dramáticas em campos de concentração ou de “reeducação”. Os regimes dirigidos por títeres não têm clemência, e no intuito de sedimentar ideias totalitárias, tantas vezes proclamadas democráticas, impõem aos cidadãos as maiores agruras. Alexander Soljenítsin (1918-2008) denunciaria as repressões em campos de prisioneiros soviéticos, e o conjunto de sua obra, incluindo-se o Arquipélago Gulag, render-lhe-ia o Prêmio Nobel. Wladyslaw Spilman (1911-2000) escreveria a narrativa Morte de uma Cidade, décadas após reeditada com o título O Pianista. Conta a sua história nos guetos de Varsóvia durante a Segunda Grande Guerra e o seu instinto de sobrevivência. Roman Polansky dirigiria o premiado filme O Pianista a partir do dramático relato. György Cziffra (1921-1994), telúrico e extraordinário pianista húngaro conheceria durante longo período as maiores adversidades e o contato permanente com a morte em campos de prisioneiros nazistas e comunistas, relatando-os em livro (Des Canons et des Fleurs. Paris, Robert Laffont, 1977, 291 págs.). Lilly Krauss, notável pianista austríaca sofreria em campo de concentração nazista. O bailarino Li Cunxin narra também sua história plena de tribulações em Adeus, China – O Último Bailarino de Mao (Brasil, Fundamento, 2007, 400 págs.). Há uma tendência mórbida dos senhores da guerra nessa perseguição às artes, à liberdade de expressão, ao livre pensamento, às comunicações independentes, às ciências ou, paradoxalmente, ao incentivo ao desempenho excepcional de alguns como forma de propaganda política. Assim aconteceu no Terceiro Reich, na União Soviética, na China e em Cuba não apenas para intérpretes e bailarinos de exceção, como para atletas fantásticos. Entretanto nem todos tiveram a mesma sorte e sucumbiram aos horrores, como os músicos levados pelos nazistas ao campo de Terezin, ou os milhões deportados para a Sibéria, ou ainda aqueles destinados ao terrível paredón. Ditadores e seus acólitos estão sempre à espreita. Aguardam apenas a oportunidade. E, hélas, periodicamente ela reaparece. Todo um rancor que parecia extinto ressurge e cidadãos aparentemente normais tornam-se ferozes, a serviço dos títeres. Vítimas da Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung pouco a pouco vão tendo a coragem de expor sofrimentos incomensuráveis.
Zhu Xiao-Mei é pianista chinesa. Há excepcionalidades em vários aspectos. Escreveu sua saga que vem somar às precedentes mencionadas (La Rivière et son secret. Paris, Robert Laffont, 2007, 330 págs.). Nascida em 1949, pertencia à família considerada de “má origem”, pois burguesa letrada. Já na infância, devido aos infortúnios provocados pelo regime comunista de Mao Tsé-Tung, sua família sofreria dificuldades. Pianista precoce, tem lá seus sucessos quando a estudar no Conservatório de Pequin. Aos 14 anos, já possui base sólida, mas uma brincadeira juvenil leva-a a júri coletivo. Vivia-se o período da terrível Revolução Cultural. As denúncias, estimuladas pelo regime, não perdoavam aqueles que se desviassem do Livro Vermelho de Mao, única leitura possível. Lavagem cerebral provoca uma sua carta em que se arrepende de ser indigna frente a Mao, traidora da Revolução, a entender serem seus pais de “má origem”. Zhu tinha apenas 14 anos! Incorpora a ideologia maoísta e torna-se, sempre temerosa, uma jovem revolucionária. Tem crises não reveladas publicamente, pois entendia que tudo teria de ser feito a seguir preceitos para que a Revolução Cultural vingasse, mas dúvidas quanto aos procedimentos a deixavam perturbada. Assiste a seus mestres – alguns deles idosos – serem humilhados e surrados no pátio do Conservatório pelos jovens da Guarda Vermelha. Entende, nesse turbilhão de incertezas e confusões interiores, que excessos estavam a ser perpetrados. Acusados de terem propagado a música ocidental, de J.S. Bach aos mais modernos, professores perderiam tudo e seriam desterrados para campos de reeducação. Outros suicidaram-se nesse período de desvario absoluto. Todas as partituras do Conservatório foram queimadas, pois traduziam a cultura ocidental decadente e, portanto, distante da classe proletária. Lembrar-se-ia “das execuções sumárias, dos cadáveres sobrepostos no anexo do Conservatório”. Com coragem, Zhu Xiao-Mei observa que houve longo tempo em que acreditou na Revolução, tão grande a pressão exercida. Encaminhada para campos de reeducação, permanece cerca de dez anos longe da família – dispersa em outros campos -, da prática da música e a passar as maiores agruras e humilhações, ainda a acreditar na Revolução. Colegas e outros estudantes partilharam momentos difíceis, onde não faltavam a denúncia coletiva diária e a leitura do Livro Vermelho de Mao, atividades realizadas após dura labuta nos campos agrícolas, quando imundos e fragilizados. Só após essas terríveis sessões o infortunado tinha direito à parca alimentação e à mínima higiene pessoal. E, numa declaração de amor à música, escreve “A Revolução Cultural estava a fim de nos tirar todo o sentido de humanidade e isso não foi possível. No fundo de nós mesmos existia um lampejo de humanidade, esse que os regimes totalitários que subestimam as potencialidades do homem, esquecem sempre, infelizmente para eles. É esse lampejo que a música trouxe de volta”. Comentaria: “Mao percebeu o poder da arte e principalmente da música sobre o povo. Ele sabia que os artistas eram perigosos, questionando sempre o real, querendo sempre mais liberdades. Esse o motivo para os atacar, a razão pela qual deixava sua esposa se apropriar da arte através de seus Yanbangxi. Na verdade, Mao considerava o saber em geral como perigoso: seu obscurantismo organizado, sistemático, extremista é testemunho.”
As vicissitudes sofridas pela pianista levaram-na a vários traumas que a acompanham. No último período em campo de reeducação conseguiu “burlar” incultos guardas e recebeu de sua mãe o seu velho piano da infância. Cordas quebradas eram substituídas por arames e J.S.Bach, Beethoven e outros, no dizer de Xiao-Mei, eram ouvidos pelas autoridades como se fossem música chinesa revolucionária. A ignorância deles, para resignado prazer da pianista, resultaria na possibilidade de estudar. Reiteradas vezes menciona a indecisão e a dúvida como integrantes de seu pensar. Ao sair da China para os Estados Unidos, depois de enormes tribulações, certezas em relação à música antagonizavam-se às dúvidas quanto à sobrevivência. Nesse país trabalhou como doméstica, faxineira em restaurante e mais outras atividades, a habitar em tantas casas de imigrantes que a acolhiam. A fim de obter o green card, casa-se por conveniência. Estuda em Boston, mas seu instinto leva-a a Paris. Obteria mais tarde, após difíceis tramitações, o passaporte francês. Hoje é reconhecida internacionalmente como pianista e professora do Conservatório Superior de Música e Dança de Paris. Seus pais e suas irmãs estão sempre em sua mente, nesses constantes deslocamentos. Retornaria à China mais de uma vez, mas com as salvaguardas da diplomacia internacional.
Quantos não são os momentos em que sente insegurança frente à vida prática? Num outro contexto, em muitas oportunidades comenta com ênfase que apenas a música livrou-a do naufrágio absoluto. O livro tem como epicentro repertorial as Variações Goldberg de J.S. Bach. A grande revelação. No entender de Zhu Xiao-Mei, trata-se da maior criação para teclado. Percorre o mundo a interpretá-la, entre tantas obras do repertório consagrado. Tão grande a empatia da artista frente à monumental composição, que se torna dignificante lê-la descrever emocionalmente da Ária às variações. Pormenoriza-se na última, Quodlibet e na reprise da Ária, quando Bach finaliza a obra. Dir-se-ia que Xiao-Mei percorre seu próprio caminho ideal, sem máculas ao descrever as Goldberg-Variationen. No Youtube-vídeos pode-se ouvir a grande criação do Kantor interpretada pela pianista chinesa. A partir da Ária, apresentada de maneira singular, pois imbuída da maior reflexão, capta-se parcela da profunda identidade de Zhu Xiao-Mei com as Goldberg… e com a vida. O gestual da pianista é econômico. Observa, a partir de conto chinês a respeito de um pintor e sua obra, a fim de exemplificar a inocuidade do gesto exagerado ao interpretar uma composição: “…ele pintou sobre o solo uma serpente de um realismo tal que o réptil parecia vivo. Uma pessoa ao passar pela rua, pisou na pintura e começou a gritar: ‘fui picado pela cobra!’ Os transeuntes se aproximaram para ver o que acontecera. Todos também pisaram exclamando: ‘Jamais vimos uma serpente tão bem pintada’! Logo, o povo conheceu a criação do artista. A fim de torná-la mais bela, o pintor colocou patas na cobra, mas ao perceberem a serpente assim configurada, os cidadãos disseram: ‘Que animal ridículo’! E o pintor caiu no esquecimento”. Em outra imagem significativa, a sugerir a introspecção frente à composição: “Para se ver o fundo de um lago, é necessário que a superfície da água esteja lisa e calma. Mais ela é tranquila, mais transparente é o fundo”.
A leitura de La Rivière et ses Secrets, ao revelar a perene insatistação da artista frente à perfeição e ao gestual inócuo refletido pelos holofotes, vem apresentar a essência essencial do que deveria ser entendido por interpretação sincera. Escreve: “Sinto-me incapaz de atingir a perfeição que eu sonho. Como tantos outros intérpretes, estou impregnada por essa impotência. Como Richter, que no final da vida diria ‘Eu não me amo’. A sabedoria seria certamente reconhecer que a perfeição não existe. Os chineses entendem bem esse axioma, quando introduzem um defeito num bordado ou na caligrafia, considerando que o defeito tornará a obra mais bela ainda. Os iranianos fazem o mesmo em seus tapetes para testemunharem que apenas Deus é perfeito”.
Zhu Xiao-Mei lega-nos um testemunho de fidelidade à música, sem jamais traí-la. Seu livro merece ser lido. O conteúdo de La Rivière et son Secret faz melhor compreender a força criativa da artista, a lutar no desespero, mas na confiança, contra a bestialidade humana. A obra foi traduzida para o português: O Rio e o seu Segredo (Guerra & Paz).

In this post I give my view of the book “La Rivière et Son Secret”, the amazing and true story of the Chinese pianist Zhu Xiao-Mei. We follow her as a young girl in China, her efforts to go on with her piano practice during the Cultural Revolution, the years in a working camp. In 1979 she managed to leave China for the US and today lives in Paris. Now internationally acclaimed, she is an example of a strong female character who never gave up her dream.