Excepcionalidade pianística frente aos dramas

É um inútil desperdício de tempo
celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos
em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Um dos maiores pianistas do século XX, Sviatoslav Richter, permanecia encoberto em mistérios até o desvelamento parcial de seu de profundis exibido no exemplar documentário do cineasta e escritor Bruno Monsaingeon, “L’Insoumis – The Enigma” (1998). Desvelava-se parte de seu diário que seria publicado posteriormente, “Notebooks and Conversations” (U.K., 2001).

Os dois nomes maiores da arte do piano da antiga União Soviética, Emil Gilels (1916-1985) e Sviatoslav Richter, nascidos pouco antes da Revolução de 1917, granjeariam recepção acalorada no mundo, mas apenas após a 2ª Grande Guerra apresentar-se-iam no Ocidente. Ambos foram alunos do notável pianista e professor Heinrich Neuhaus (1888-1964). Em seu livro referencial, “L’Art du Piano” (Tours, Van de Velde, 1971, tradução da edição russa publicada em 1958), o mestre louva seus dois discípulos, mas é nítida sua preferência por Richter. Se as referências a Gilels são sempre elogiosas, as endereçadas a Richter são pormenorizadas e plenas de adjetivos os mais efusivos. Entre essas afirmações: “Jovem ainda, já dava provas de perfeita compreensão musical, acumulando reservas em seu cérebro e possuindo um dom excepcional de virtuose, levando-me a seguir velho conselho: ensinar um sábio resulta deformá-lo”; “Quando ouço Richter, minha mão espontaneamente gestualiza o compasso. O universo rítmico de seu toque é tão poderoso, seu ritmo tão lógico, tão organizado, tão rigoroso e tão livre que é difícil resistir à tentação de participar através do gesto…”; “tenho a impressão de que toda a obra que ele interpreta, quão gigantesca possa ser, se nos depara como uma imensa paisagem, todos os detalhes inseridos, olhar de águia nas alturas com nitidez prodigiosa. Diria de uma vez por todas que jamais tive a oportunidade de ouvir um pianista cujo horizonte artístico fosse tão vasto, cuja interpretação fosse também tão completa organicamente”; “Através de Richter ouvi a melhor execução de Bach, a mais fiel, a mais acessível e convincente”.

Ratificando considerações de Heinrich Nehuaus sobre as interpretações da obra de J.S.Bach por Sviatoslav Richter, clique para ouvir a Fantasia e Fuga em lá menor (BWV 944):

https://www.youtube.com/watch?v=c7OS_vpMz-s

Sobre a excepcional qualidade de rapidamente aprender uma composição, Neuhaus comenta: “Há alguns anos, Richter teria de tocar três concertos russos num mesmo programa. O de Rachmaninov ele já conhecia, mas jamais tocara os outros dois, de Glausonov e Rimsky-Korsakov. Após trabalhá-los durante uma semana ele os interpretou magistralmente”.

Clique para ouvir, na interpretação de Sviatoslav Richter, L’Alborada del Gracioso de Maurice Ravel:

https://www.youtube.com/watch?v=OePeT12EJ14

A competência de Heinrich Neuhaus é incontestável e seu livro, fonte de ensinamentos perenes. Contudo, não lhe teria faltado uma certa apreensão psicológica? Gilels e Richter foram seus alunos maiores e o excesso de lisonjas a Richter não condiz absolutamente com a avaliação da história, que dá merecimento nivelado nas alturas aos dois pianistas, apesar de personalidades tão diferentes sob os aspectos pianísticos e de vida, a entender musicalmente a plena regularidade e tradição de Gilels e a interpretação singular e telúrica de Richter. Mistérios que se fazem maiores quando, nas 228 páginas de “L’Art du Piano”, desfilam tantos personagens, mas sobre seu filho, Stanislav Neuhaus (1927-1980), ótimo pianista – há gravações no YouTube -, seu aluno e assistente, tornando-se futuramente mestre de notáveis pianistas como Brigitte Engerer (1952-2012) e Radu Lupu (1945- ), não há sequer uma citação?

Tive o privilégio de ouvir Sviatoslav Richter interpretar o 2º Concerto para piano e orquestra de Brahms no Palais de Chaillot, em Paris, no início da década de 1960. Inesquecível. Colegas curiosos foram até a Salle Gaveau e, em compartimento anexo, ouviram-no estudar para a apresentação noturna. Disseram-me que ele ficou cerca de uma hora só a repetir as duas passagens introdutórias do Concerto. Aliás, Neuhaus comenta em “L’Art du Piano” que habitualmente Richter se pormenorizava durante um bom tempo sobre determinada passagem e que, após ter-lhe dito que certa frase musical da 9º Sonata de Prokofiev – dedicada ao pianista – saíra muito bem, ouviu de Richter “Estudei-a durante duas horas sem interrupção”.

Richter confessava ter 80 programas em seu repertório. Nas digressões pela imensidão russa levava cerca de 25 programas diferentes. Preferia tocar em salas pequenas e nas tantas cidades maiores e menores da antiga União Soviética a se apresentar nos Estados Unidos. Essa atitude recrudesce com o passar dos anos. Também confessaria que não tocava para o público, mas para si mesmo, a parafrasear, logicamente sem o saber, o ilustre poeta e escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923): “Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim”.

Clique para ouvir, na interpretação de Sviatoslav Richter, a Fantasia op 28 de Alexandre Scriabine:

https://www.youtube.com/watch?v=-mSsFzEhl8E

Richter testemunharia a primazia das baixíssimas intensidades, os pianíssimos a contrastar com o limite extremo da alta intensidade. Em determinadas obras tem-se a impressão de que o piano será demolido. Toda essa força extraída através de esforço homogêneo. Nesses extremos, considere-se o relativo aos andamentos. Os lentos por vezes se tornam bem mais lentos ou largos e os rápidos, prestos, prestissimos volando ou velocissimos. Estou a me lembrar de que, tendo visitado a insigne professora e musicista francesa Nadia Boulanger (1887-1979) em Maio de 1961, para ela toquei três peças – Estudos de Debussy e Roger Ducasse e a Tocata de Camargo Guarnieri. Antes de me retirar, fiz-lhe uma pergunta: qual o segredo maior da interpretação? Mlle Boulanger, figura fundamental na história da música francesa do século XX, responderia ser a dinâmica extrema, do som quase inaudível à intensidade mais ampla, sem agressão, exemplificando justamente a citar Richter.

O pianista, segundo Neuhaus, conseguia abranger o intervalo de 12ª!!! E o exemplo por ele citado, de uma 10ª em complexa posição dos cinco dedos, é salientado pelo autor de “L’Art du Piano”.

O notável pianista preferia tocar em salas com pouca luz, apenas com iluminação sobre o teclado. Dizia que o público ia ao teatro para ouvi-lo, não para vê-lo.

Em 1980, após falhas de memória em Tóquio e na França, passou a se apresentar com a partitura à frente. Confessa no documentário mencionado que o fato revelou algo que considera honesto, pois desaparece o arbítrio. Vários notáveis pianistas têm se valido dessa prática.

Clique para ouvir, na interpretação de Sviatoslav Richter, seleção de Estudos de Chopin, op. 10 e op. 25:

https://www.youtube.com/watch?v=4etQPsY-2YM

A figura emblemática de Sviatoslav Richter, se em parte foi desvelada através do documentário de Bruno Monsaingeon, revelaria nos estertores da existência a depressão ou desalento. A natureza singular frente à vida e à música; a opção pela carreira que a certa altura se torna quase “monástica”, distanciando-o das grandes salas em que parte do público tende ao supérfluo, como afirmava, fato que o conduz acentuadamente às audiências das pequenas salas e cidades menores na vastidão das estepes russas e, certamente, a disfunção auditiva relacionada à exatidão da altura dos sons gravados na partitura, impedindo-o de prosseguir se apresentando poucos anos antes da morte, que ocorre em 1997 após ataque cardíaco, endossam o abatimento.

Convido o leitor a assistir ao documentário de Bruno Monsaingeon “L’insoumis – The Enigma”, dividido em duas partes e legendado em inglês. Depoimentos colhidos por volta dos 80 anos são pungentes. Interpretações marcantes são apresentadas durante a exibição com diversos depoimentos fulcrais, mormente da cantora Nina Dorliac, com quem viveu de 1946 a 1997. Uma amizade profunda os unia, apesar da homossexualidade do pianista, numa União Soviética avessa à situação, mas veladamente a “aceitar” em se tratando de Sviatoslav Richter. Tanto era admirado que, ao morrer Joseph Stalin (1878-1953) no dia de 5 de Março, foi Richter que tocou no velório em um piano de armário com pedais danificados. Todavia, seu pensamento estava inteiramente direcionado ao seu grande amigo Serguei Prokofiev (1891-1953), que lhe dedicou obras e que o considerava “o maior pianista do mundo”. Prokofiev morreria também no mesmo dia, 5 de Março.

Clique para assistir no YouTube, de Bruno Monsaingeon, o documentário “L’Insoumis – The Enigma”:

https://www.youtube.com/watch?v=yfJVpjI3wJM (1ª Parte)
https://www.youtube.com/watch?v=iVhxqEN9j7k (2ª Parte)

Sviatoslav Richter (1915-1997) is widely recognized as a giant of 20th century pianism, defined as a genius by Heinrich Neuhaus, his teacher at the Moscow conservatory. I was lucky enough to hear him play Brahms’ piano concert nº 2 in Paris in the sixties. Some friends who watched him rehearsing commented later that Richter spent one hour over a single passage. With an immense repertoire and despite his great acclaim in his own country and the West, Richter much preferred playing in small venues with just a single lamp on the piano, explaining that this helped audiences to focus on the music and not on the musician. An intensely introverted and enigmatic individual, his life story has been somewhat hidden in shadows, reason why I invite readers to watch on YouTube the documentary “Richter, The Enigma”, which reveals, through conversations with Richter himself and people who knew him, some moments of his often troubled life together with clips of memorable performances.