Relato Competente e de Interesse

Molde original da mão de Chopin feito por Clésinger (Museu Carnavalet). Clique para ampliar.

Me vint aussi la consolation d’être délié de mes entraves,
comme si toute cette chair racornie
je l’avais échangée dans l’invisible ainsi que des ailes.
Comme si je me promenais, enfin né de moi même,
en compagnie de cet archange que j’avais tellement cherché.

Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle, chap. XLV)

Foram inúmeros os e-mails recebidos sobre o post de 9 de Outubro. Agradeço a solidariedade dos leitores que externaram apoio e votos de pronto restabelecimento. Chega-se a uma idade em que a intervenção cirúrgica corresponde a um desabrochar de esperanças e essa ideia é estimulante, mormente se a operação é realizada nas mãos, fulcro maior da comunicação musical com o ouvinte. Felizmente tivemos, após a cirurgia de 5 de Julho, uma lenta e cuidadosa preparação para o primeiro recital, que se realizou no último dia 27 de Outubro na Casa de Portugal de São Paulo, a fazer parte do excelente curso O Som de Portugal ministrado pelo ilustre professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso.
Entre os e-mails, um deixou-me perplexo, não apenas pela dimensão, como pela clareza ao tratar de episódios que podem, eventualmente, levar um pianista ao mal que me acometeu nos dois polegares, sendo que o da mão esquerda já em processo de recuperação após a cirurgia.
François Servenière (1961- ) é compositor de sólida formação, produção diversificada e meritória, e pensador, algo incomum entre os músicos, geralmente não afeitos à linguagem escrita literária. Em seu site pode-se aferir sua rica atividade musical (www.francois-serveniere.com), ou em outra via (http://www.youtube.com/EsolemProduction). Anteriormente entrara em contato comigo, mercê das já 40 músicas por mim gravadas e inseridas no YouTube. Tem tecido comentários de absoluta competência, pois teve muito boa formação pianística. Costuma realizar, quanto aos meus textos do blog ou dos Essays, a conhecida tradução automática, que, apesar de falhas acentuadas, leva o leitor a compreender razoavelmente do que se trata. Quanto a mim, busquei traduzir as considerações do compositor.
Servenière observa, em depoimento que deveria ter guarida entre os instrumentistas: “Li com muito interesse o post sobre sua operação do polegar da mão esquerda. Você relata uma experiência com a qual muitos pianistas atuais se confrontam, notadamente aqueles cujo repertório destina-se ao século XX. Somando-se à virtuosidade beethoviniana e lisztiana do século XIX, os compositores acrescentaram um nível técnico suplementar, entre os quais o relacionado às aberturas dos dedos e às escalas dodecafônicas, que não são muito naturais no teclado às mãos formadas na tradição.
Intérpretes japoneses disseram-me que minhas obras Rhythmics and Repetitives, que tocaram em recital e gravaram em CD, são tão difíceis como aquelas de Charles-Valentin Alkan. Não sei se é um cumprimento ou uma reprimenda”. Alkan (1813-1888), compositor francês de origem judaica, notabilizou-se por ter escrito obras de extrema dificuldade técnico-pianística. Privou da amizade de Franz Liszt (1811-1886). Prossegue Servenière: “Quando nós escrevemos música, nunca pensamos no martírio dos intérpretes, jamais nos problemas de saúde e no fim cirúrgico que surgirá um dia ou outro por força das circunstâncias, obrigando-os a uma ginástica tão antinatural, tão pouco ortopédica”. Lembrei-me incontinente de duas obras de compositores belgas que deveriam integrar a magnífica seleção que constitui o CD New Belgian Etudes, lançados pela Rode Pomp em 2004, onde dez dos mais expressivos autores belgo-flamengos estão representados, sendo algumas das composições, transcendentais. Os dois Estudos em apreço extrapolavam, e muito, a utilização limite – se assim podemos definir – do posicionamento das mãos, tamanha as atrozes dificuldades que se apresentavam. Foi árdua a edificação interpretativa, mas no ato da gravação constatei, só naquele momento, e não no recital dias antes, que as obras não vingariam tão grandes foram os impecilhos “criados” pelos autores, a meu ver a beirar a arbitrariedade. Havia o exagero pelo exagero exposto por dois compositores de talento e respeitados, mas… Abortei-as, apesar de terem sido a mim dedicadas. Recebi os cumprimentos do engenheiro de som Johan Kennivé e de Alphonsus Medinilla, amigo, professor e pianista que compareceu às gravações em Mullem, no coração da Flandres. Entenderam-nas desproporcionais. Exemplifica bem o não pensar de determinados compositores nessa fronteira que sempre está exposta, mas que deveria ser ultrapassada de maneira coerente. Continua Servenière “Os compositores só pensam na música. Estudam a técnica dos instrumentos, mas estão de tal forma persuadidos de que os intérpretes de música são símios universais, que não terão nenhuma dificuldade em tocar esta ou aquela passagem, convencidos inclusive, a partir da história da evolução das técnicas instrumentais, de que todas as dificuldades acabaram por ser dominadas, não dando pois a menor atenção à problemática, sendo o fato hoje flagrante. Aos intérpretes a função de se ‘virarem’ com aquilo que lhes é apresentado ! O pior, virou norma !” François Servenière, após citar um desses colossos técnico-pianísticos da atualidade, afirma: “Quando os compositores vêem isso, indagam-se naturalmente que a técnica que presenciam é a última fronteira, a configurar-se pois o limite extremo da virtuosidade para o qual se faz necessário compor, escrever. É triste, mas é a realidade que se nos antolha.
Sob outra égide, estaria programada na cabeça dos compositores, uma mudança que os obriga a ultrapassar essa última fronteira. É isso necessário? Não se poderia instaurar uma moratória sobre a guerra técnica na música, assim como sobre as armas de destruição maciça? Durante muito tempo eu me formulei a questão. É evidente que a música, como toda linguagem, tantas vezes sofre essa lei do ‘toujours plus’, como escreveu o jornalista francês François de Closets. Mostra-se necessário sempre ultrapassar o que foi feito ontem e os artistas que não participam do jogo sofrem consequências.
De minha parte, decidi, na minha carreira de compositor, não continuar a seguir o ‘sempre mais’. Estava a haver no meu interior combate com determinadas armas da escritura, às qual eu renunciei posteriormente, conduzido que fui, àquela altura, a não mais escrever de acordo com meu coração, mas uma música para épater la galerie. Escrevi essa profissão de fé em meu site, sob a frase ‘François Servenière is a french composer, born in 1961’”. Há toda uma explicação a respeito desse novo caminhar em direção a uma linguagem na busca daquilo que ele denomina a essência essencial da música. Nessas ricas observações, Servenières ainda diria “Eu conheço hoje os limites que me imponho no nível da escritura, mas fiz-me ‘respeitar’ pelos meus pares e pelos intérpretes por ter composto obras muito difíceis para piano (Rhytmics and Repetitives) ‘que não apresentarão mais qualquer problema aos pianistas daqui a cinquenta anos’, segundo as palavras de François-René Duchable. Sim, é seguramente necessário para me fazer respeitar como compositor, mas seria imperativo no absoluto? Eu não saberia responder. É obra do passado, eu a compus, eu escalei meu Everest, mas há 14 ‘8.000’ sobre a Terra, penso eu, apesar de tudo…”

Molde original da mão de Franz Liszt (Museu Franz Liszt). Clique para ampliar.

A cirurgia do polegar e suas implicações, motivadas, em parte, por excessos que representaram parcela de meu repertório reservado à apresentação de mais de 120 obras contemporâneas em primeira audição, seria o pretexto para o instigante depoimento desse excelente músico, compositor e pensador francês. Conclui Servenière, a observar a nova senda a percorrer: “Eu aspiro agora escrever belas coisas e meu ideal é atingir a pureza escritural de Gabriel Fauré e Ennio Morricone na música, a perfeição das formas de Brancusi na escultura, a ingenuidade onírica de Paul Gauguin na pintura, a simplicidade de Antoine de Saint-Exupéry ou de Ernest Hemmingway na literatura, o todo inspirado na filosofia de Baruch Spinoza. Contudo, sempre sendo fiel ao meu estilo e à minha personalidade, logicamente… É assim que vislumbro meu futuro como compositor.”
As palavras de François Servenière são contundentes. Acrescentaria, à guisa de subsídio, que assim como uma corrida artificialíssima no computador torna o tempo para os 100 metros rasos estabelecido pelo fenômeno Usain Bolt irrisório, sob outra égide as “conquistas” dos compositores voltados à eletroacústica e a tantas outras designações sempre em mutação, podem, para os mais talentosos, criar a imagem de que os andamentos e as dinâmicas são infinitos. Ao escreverem para um instrumento, em visitas temporárias, haveria essa possibilidade de analogia. Recordes terão de ser batidos, mas o “compositor” corre o risco, muito mais frequentemente do que se imagina, de ver sua obra apresentada em uma primeira e única performance. É só conferir programações especializadas nessa área.
Bem disse o Dr. Heitor Ulson que a atividade do pianista baseia-se em algo anti-natural, mas o intérprete se adaptou aos obstáculos que foram, paulatinamente, colocados à sua frente. Seria possível acreditar que, hélas, outras categorias degenerativas das articulações dos dedos surjam no futuro. À Ciência Médica, o desafio perene de saber enfrentar problemas novos.

I received many e-mails commenting on my hand surgery and wishing me a quick recovery. One of them — from the French composer François Servenière — was very special. Impressed by his knowledge of the subject and sensible remarks, I translated his message in its entirety, turning it into this week’s post and hoping his words will find their way into other musicians’ minds.