Navegando Posts publicados em março, 2012

Todos Assistem e Nada Acontece

Falta-nos a voz com que protestar.
Almeida Firmino

Quantos não foram os posts em que me posicionei  em relação às incomensuráveis distorções a que diariamente assistimos no Brasil, sem que nada, mas rigorosamente nada, aconteça. Ultimamente, membros do Congresso brasileiro defendiam acaloradamente salários extras, 14º e 15º, não considerando, frise-se, que há Assembléia Legislativa de um dos Estados da Federação que recebe além. Em outro debate temático, para arrasar quaisquer considerações relativas à moralidade, senador com mais de 60 assessores (sic) defendia com veemência parlamentar essa “naturalidade”. Os Três Poderes estão repletos de exemplos de distorção. Inchados, pagam altos salários para batalhão de não concursados e altíssimos outros a funcionários que sabem, através da interpretação de leis e regulamentos, obter privilégios que os levam a alturas salariais estupidamente elevadas. Jornais, rádio, televisão, internet denunciam esses horrores e nada, mas nada, acontece. Perdemos no Brasil as forças interiores para reagir. Quando se fala em reunir o povo para manifestações contra essa chagas que corroem o país, como a mater corrupção, a burocracia excessiva, a máquina política egocentrada nesse “nirvana” denominado Poder  pouquíssimos comparecem, diferentemente das aglomerações evangélicas, paradas gays e outras mais que atravancam o trânsito já caótico da cidade.

A mídia já cansou de mostrar os preços dos carros no Brasil e no Exterior. É chocante a diferença. O governo arrecada uma “dinheirama” da produção automotiva e as montadoras silenciam quanto aos até escorchantes lucros que obtêm no país. Os preços de restaurantes médios estão muitíssimo acima dos de grande categoria na Europa, o índice MacDonald’s evidencia o Big Mac bem superior ao que é cobrado no Exterior, o preço da Ponte Aérea São Paulo-Rio é verdadeiro assalto, os bancos têm lucros absurdos, os serviços nas cidades brasileiras estão cada vez mais elevados, os preços das grandes redes de supermercados são alvo de reclamações generalizadas, a telefonia no país é caríssima, os impostos aferidos pelo Estado batendo recordes sobre recordes. Em tantos segmentos, a voz das ruas, roucas, mas audíveis, são “escutadas” pelos que caminham pela cidade. Na feira-livre, essa voz acaba por ser uníssona e os preços dos produtos comentados pelos que a frequentam e pelos laboriosos feirantes.

Esperava um exemplo típico para escrever este post. Recebi da França um pacote com revistas e um livro sobre música, livres et brochures. O amigo enviou-me a encomenda no dia 13 de Março às 12h. A entrega deu-se no dia 19, ou seja, no quinto dia útil. O preço pago pelo remetente para essa entrega especial EUR$ 5,49, corresponde aproximadamente a R$ 13,20. A primeira impressão foi de choque, pois estou habituado a enviar livros e revistas para amigos do Exterior e sempre considerei elevadíssimas as quantias pagas. Mesmo um livro enviado para uma cidade próxima como Rio de Janeiro e com peso bem inferior custou-me praticamente o dobro para o mesmo prazo de entrega. Atiçado pela curiosidade, levei a encomenda até a agência dos Correios mais próxima, virei o envelope ao contrário, livre de qualquer endereço ou carimbo, e pedi para a atendente verificar o preço para entrega rápida na França. Disse-lhe o nome da cidade. A simpática funcionária comunicou-me que, se quisesse que fosse entregue em 2 ou 3 dias, custaria aproximadamente R$ 100,00, e que para um prazo maior, de 6 a 13 dias, num envio denominado “prioritário com registro”, R$ 65,35 até 1.200 gramas. Meu envelope estava a pesar exatamente  1.180 gramas, pois mantido como recebi, com livro e revistas.

Prezados leitores, o que se pode verificar é a diferença escorchante. Essa realidade nossos governantes conhecem, estão cansados de ler, ver e ouvir através da mídia. Todavia, a equiparação com a realidade dos preços da Europa, no caso, faria com que certamente menos dinheiro entrasse para esse imenso Leviatã, o monstro que tudo devora. O meu insistente “nada a fazer” continua, pois, como reza o poeta açoriano Almeida Firmino: “Falta-nos a voz com que protestar”.

On the outrageous cost of living in Brazil, where daily life — due mainly to government abusive taxes and entrepreneurs’ profit margins — has become incredibly expensive in comparison with Europe and the US, without the counterpart of good salaries and quality in public services.

 

 

Quando o Presente Tem Origem

Sua vida, então, começou a ser objeto de geral curiosidade.
Todos queriam saber, todos perguntavam:
que terá feito aquele homem penitente?
D. Henrique Golland Trindade
( Matt Talbot-O operário Penitente)

Ao abordar os cinco anos de posts publicados ininterruptamente escrevi que a aposentadoria e a não obrigatoriedade universitária teriam provocado o afluxo dos textos livres, não acadêmicos. A professora M.L.B.M. – respeito as iniciais –  enviou-me e-mail querendo saber se esses escritos nasceram a partir dos acontecimentos mencionados ou tiveram origem em tempos outros. Observa: “Sou professora aposentada do ensino médio e tenho acompanhado seus posts há cerca de um ano, quando, fazendo uma pesquisa sobre sua carreira, descobri o blog por acaso. Gostaria de saber se esta forma de escrita mais livre, que hoje encontro nos textos de seu blog, tão distinta da exigida para a carreira universitária, desenvolveu-se ao longo dos anos ou foi uma descoberta favorecida pela nova fase de sua vida.”

Confesso que as considerações da professora chegaram em momento oportuno. Outros leitores igualmente teceram observações próximas às da prezada senhora. Estava a alinhar livros no alto da biblioteca quando encontrei, atrás de uma fileira “inacessível”, caderno perdido de textos que fluíram descontraidamente durante a década de 70, pouco antes de adentrar os portões da universidade como docente em 1982. O achado alegrou-me. Menciono esse caderno em crônica bem anterior (vide Pedro, o Andarilho – O Reaparecimento, 15/02/2008). O post provocou até uma certa “desconfiança” em alguns leitores, pois não acreditavam que um desventurado homem das ruas  pudesse ter atravessado todas as adversidades da vida ao relento, abandonado em uma calçada, e ter sido por mim reconhecido após três décadas!!! Diziam praticamente impossível ser o mesmo indivíduo. Quando do post em questão, em que relatei o encontro a rememorar fatos passados, escrevi sobre esse sumiço ocorrido no início dos anos 80: “Comentei em casa o desaparecimento de Pedro. Já fazia parte da minha rotina do olhar e das muitas indagações que elucubrava a seu respeito. Muitos anos após, reagrupando papéis espalhados, encontrei o texto que escrevera sobre ele em 1979, hoje perdido para sempre ao ter organizado outros escritos”.

Ter “redescoberto” esse texto sobre Pedro, escrito aos 15 de Agosto de 1979, às 23:30h, chegou a emocionar-me, mormente pelo fato de que nosso último encontro data de um ano e tantos meses, quando, ao levar suprimentos da feira de sábado ao cidadão abandonado pela sociedade, encontrei-o em lastimável estado, a apresentar sinais de gangrena na mão esquerda, pois seu velho relógio já penetrara parte do pulso e toda a região mostrava-se intumescida e muito escura. Naquele instante passava uma viatura do Estado ou da Prefeitura. Desceu um atendente, examinou-o e levou-o. Jamais retornou ao seu canto preferido de infortúnio absoluto. Lembro-me do funcionário, que me advertiu pelo fato de estar dando ao Pedro dois pastéis, bananas e uma garrafa grande de refrigerante. Indaguei se ele conhecia Pedro. Disse-me que estava a conhecê-lo naquele instante, ao que lhe respondi que, se o Estado abandona seus cidadãos, há aqueles que ainda têm consideração pelos infortunados e que conhecia Pedro há cerca de trinta anos. Fechou o semblante e levou o pobre homem.

A responder, pois, à atenciosa leitora, insiro o texto escrito a mão em 1979 nesse velho caderno: “Pedro é um andarilho. O seu aspecto exterior é o de um mendigo. Roupas rasgadas, maltrapilho que é, Pedro não vive da mendicância voluntária. Seu rosto está permanentemente encoberto por um negrume que faz lembrar os que sofrem as queimaduras das geleiras. A roupa é usada até o desgaste total. Em Pedro tudo isso não chega a chocar.

A primeira diferença entre Pedro e os seus milhares de colegas é o porte. Percebem-se traços aristocráticos atavicamente ligados a um passado abastado. Quando caminha, Pedro tem o corpo ereto e um olhar para a frente, altivo, perdido num mundo de simbolismos.

Há tempos observo Pedro andando sem quase parar pela Avenida Santo Amaro. Disso resulta pés plenos de chagas, protegidos por uma estranha sandália.

A primeira vez que conversei com Pedro foi numa noite quando, ao voltar a pé para casa após visita a um amigo, encontrei-o sentado numa calçada. Perguntei-lhe se necessitava de algo. Disse-me que não. Indaguei-lhe se tinha fome. Não, foi a resposta. Intrigava-me seu caminhar eterno durante os dias, exposto ao sol e à chuva. Indaguei-lhe novamente sobre o porquê da marcha. Respondeu-me, evasivamente, que à noite poderia tropeçar e da queda ele não gostava. Compreendi melhor seu porte altivo durante o dia. Dei-lhe uns poucos trocados. Agradeceu-me com um ‘bom dia, amigo’. Nada pedira. Perguntei-lhe o nome. Pedro dos Santos, a resposta.

Muitas outras vezes encontrei Pedro, encostado num poste entre a Av. Santo Amaro e a Rua Jesuíno Maciel. Quando o farol permite, dou-lhe alguma coisa. A resposta é a mesma ‘Bom dia, amigo’. Nada pede.

Hoje senti-me gratificado. Ouvi de Pedro respostas às minhas indagações. Duas da tarde vinha eu andando pela avenida de Pedro, quando com satisfação o encontro. Saúdo-o com afeto. Retribuiu-me em silêncio, com um sorriso dos bem aventurados. Fui mais longe e indaguei: ‘Pedro, por que você anda tanto?’ Disse-me ‘Eu busco a cadência’. Nova questão ‘Que cadência, Pedro?’  Meu irmão continuou:  ‘Andando eu vivo, sinto o sangue percorrer o meu corpo inteiro e não posso parar. Procuro então a cadência’. O seu destino me intrigava ‘Onde você dorme? Nova resposta  ‘Embaixo da ponte, o senhor sabe, as pontes têm vida. Elas vêem passar toda a cidade’. Indago-lhe: ‘E quando faz frio?’ Pedro, instantâneo: ‘Há jornais, caixotes, papelões. Os jornais têm vida. Não tenho medo. Só temo as correntes que existem sobre nós’. Não consigo explicações mais detalhadas.

Olho para os pés sangrando de Pedro e prometo-lhe para o dia seguinte, ao meio dia, sapatos e roupas. Apenas sorri. Pedro nada solicita. Pedro continua a andar. Seu porte ereto o levará um dia ao encontro da cadência.

Lembro-me da noite anterior. Padre Aquino, na reunião mensal, falou sobre Cristo e a respeito da ideia que podemos fazer dele. Para uns, o som de uma nota musical; para outros  motivações diversas. Para Pedro, o apóstolo de pés inchados e feridos, a palavra do Filho bastava. Para Pedro, o apóstolo perdido da cidade, a cadência é o destino. Certamente encontrar-se-á em Deus, a cadência plena, inefável”. Escrito a tinta, o texto finda, e palavras a lápis do punho de uma de minhas filhas foram acrescentadas: “Pedro é bom! Pedro é gente como nós”.

On how I happened to recover a passage written 32 years  ago ― here transcribed in its entirety ― about Pedro, the wanderer, a character already portrayed in this blog.

 

Recital de Piano no Instituto Dante Pazzanese

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens…
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Cecília Meireles

Comemora-se, de maneira oficial ou independente, o ano Portugal-Brasil ou Brasil-Portugal,  quando tanto os Estados como a iniciativa privada propõem eventos variados.

Já havia me apresentado no referencial Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (2011), em recital dedicado ao bi-centenário de Franz Liszt (1811-1886). Sensível às comemorações luso-brasileiras, a ilustre Diretora Geral da Instituição, Doutora Amanda Sousa, convidou-me para dois recitais com programação diferenciada. O primeiro recital foi igualmente a pensar no Jubileu de 70 anos e no Curso Intensivo de Cardiologia e deu-se no último dia 14 de Março. No programa, obras-primas compostas por autores dos dois países: Francisco de Lacerda (1869-1934) e Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O segundo dar-se-á em Agosto.

Em 2011 apresentei em sete cidades portuguesas as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do compositor açoriano Francisco de Lacerda. Como muitas da histórias têm caráter programático – Lacerda insere frases a determinar o correr da história -, o notável professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso preparou um data show sensível e pleno de interesse para o ouvinte acompanhar o desenrolar das pequenas histórias. Tratava-se da primeira vez que as 36 Histoires…, pouquíssimo tocadas, eram apresentadas nessa formatação. No recital utilizamos o material gentilmente cedido pelo professor Pedrosa Cardoso e um meu aluno de música, Paulo Marcos Filla, generosamente encarregou-se de passar o data show.

Aquilo que defendo há décadas tem nessa obra prima de Francisco de Lacerda o exemplo típico. O Sistema parece não admitir a redescoberta que poderá vir a conflitar com o repertório superconhecido e confortável para intérpretes, público e empresários. Se essa atitude está presente quanto às criações excelsas do passado, transfere-se igualmente para o contemporâneo qualitativo. Recentemente, o compositor François Servenière observou em um de seus instigantes e-mails: “Escrevi em uma de minhas canções, que se chama Voyageur, a frase: ‘Viajante, seu destino é partir alhures…’. Sim, o viajante, em corpo e espírito, tem o movimento inscrito no cerne de suas preocupações, de suas necessidades e de seus desejos. O movimento é uma segunda natureza… Para o momento e por motivos objetivos, eu viajo pouco fisicamente, mas muitíssimo sob a égide do espírito, buscando organizar meu futuro para conseguir o equilíbrio do todo. É por isso que compreendo e admiro sua atitude, mesmo a considerar a sua idade, ao não se satisfazer com a aquisição já sedimentada de obras do repertório da tradição, indo sempre à procura não apenas do passado esquecido, mas atrás da última fronteira do que está a acontecer, encomendando sem cessar novas obras aos compositores de mérito”.

As consagradas criações de nosso grande Villa-Lobos, Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco, pertencentes ao importante conjunto Ciclo Brasileiro, concluíram o recital.

Teria de considerar a relevância de manifestação artística em Congresso de alto nível, que contou com a presença de renomados cardiologistas do país e das Américas. No dia do recital, a visão de um piano de concerto entre as mesas de palestrantes e debatedores dava bem a noção da presença sonora que aconteceria ao final das sessões. Numa metáfora bem amalgamada, diria que a música, a estabelecer a expressão dos sentimentos e, por que não, do “coração”, espalhou-se pelo Auditório Cantídio de Moura Campos Filho. O numeroso público, constituído por ilustres congressistas, residentes, estagiários e convidados, ouviu com o maior respeito as obras apresentadas.

Ao finalizar as Trente six histoires… de Francisco de Lacerda, a recepção pública não foi inferior às duas consagradas criações de Villa-Lobos. Se ao Sistema não interessa o repertório pouco frequentado, caberá ao intérprete ter a coragem de enfrentar desafios. A acolhida apenas encoraja o velho intérprete a buscar novas fronteiras. Há maior alegria do que acreditar no desbravamento de outros horizontes?

Agradeço imenso à Diretora Geral do Instituto Dante Pazzanese, Professora Doutora Amanda Sousa, que acatou o projeto imediatamente ao tomar conhecimento da magistral obra de Francisco de Lacerda. Figuras relevantes não dão guarida à evasiva. A  Diretora Geral é exemplo desse acreditar. E resultou. Foi uma ocasião que ficará gravada pela qualidade insofismável das obras apresentadas, escritas por grandes “maratonistas” e interpretadas pelo pianista, corredor de revezamento que necessariamente um dia passará o bastão a outro corredor nas mesmas condições. Efusivos parabéns ao Instituto Dante Pazzanese,  referência plena em Cardiologia.

2012 is officially the year of Portugal in Brazil and of Brazil in Portugal and a series of cultural events in various areas will take place. Invited to give a recital at the Dante Pazzanese Institute of Cardiology, I chose to present, getting in the spirit of the year and as usually trying to avoid the standard repertoire for piano, Francisco de Lacerda’s masterpiece “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” and Villa-Lobo’s “Impressões Seresteiras” and “Dança do Índio Branco”. The reception was enthusiastic in both cases, proving my point that the audience is open to challenges, but most interpreters are reluctant to explore new horizons.