Quando o Presente Tem Origem

Sua vida, então, começou a ser objeto de geral curiosidade.
Todos queriam saber, todos perguntavam:
que terá feito aquele homem penitente?
D. Henrique Golland Trindade
( Matt Talbot-O operário Penitente)

Ao abordar os cinco anos de posts publicados ininterruptamente escrevi que a aposentadoria e a não obrigatoriedade universitária teriam provocado o afluxo dos textos livres, não acadêmicos. A professora M.L.B.M. – respeito as iniciais –  enviou-me e-mail querendo saber se esses escritos nasceram a partir dos acontecimentos mencionados ou tiveram origem em tempos outros. Observa: “Sou professora aposentada do ensino médio e tenho acompanhado seus posts há cerca de um ano, quando, fazendo uma pesquisa sobre sua carreira, descobri o blog por acaso. Gostaria de saber se esta forma de escrita mais livre, que hoje encontro nos textos de seu blog, tão distinta da exigida para a carreira universitária, desenvolveu-se ao longo dos anos ou foi uma descoberta favorecida pela nova fase de sua vida.”

Confesso que as considerações da professora chegaram em momento oportuno. Outros leitores igualmente teceram observações próximas às da prezada senhora. Estava a alinhar livros no alto da biblioteca quando encontrei, atrás de uma fileira “inacessível”, caderno perdido de textos que fluíram descontraidamente durante a década de 70, pouco antes de adentrar os portões da universidade como docente em 1982. O achado alegrou-me. Menciono esse caderno em crônica bem anterior (vide Pedro, o Andarilho – O Reaparecimento, 15/02/2008). O post provocou até uma certa “desconfiança” em alguns leitores, pois não acreditavam que um desventurado homem das ruas  pudesse ter atravessado todas as adversidades da vida ao relento, abandonado em uma calçada, e ter sido por mim reconhecido após três décadas!!! Diziam praticamente impossível ser o mesmo indivíduo. Quando do post em questão, em que relatei o encontro a rememorar fatos passados, escrevi sobre esse sumiço ocorrido no início dos anos 80: “Comentei em casa o desaparecimento de Pedro. Já fazia parte da minha rotina do olhar e das muitas indagações que elucubrava a seu respeito. Muitos anos após, reagrupando papéis espalhados, encontrei o texto que escrevera sobre ele em 1979, hoje perdido para sempre ao ter organizado outros escritos”.

Ter “redescoberto” esse texto sobre Pedro, escrito aos 15 de Agosto de 1979, às 23:30h, chegou a emocionar-me, mormente pelo fato de que nosso último encontro data de um ano e tantos meses, quando, ao levar suprimentos da feira de sábado ao cidadão abandonado pela sociedade, encontrei-o em lastimável estado, a apresentar sinais de gangrena na mão esquerda, pois seu velho relógio já penetrara parte do pulso e toda a região mostrava-se intumescida e muito escura. Naquele instante passava uma viatura do Estado ou da Prefeitura. Desceu um atendente, examinou-o e levou-o. Jamais retornou ao seu canto preferido de infortúnio absoluto. Lembro-me do funcionário, que me advertiu pelo fato de estar dando ao Pedro dois pastéis, bananas e uma garrafa grande de refrigerante. Indaguei se ele conhecia Pedro. Disse-me que estava a conhecê-lo naquele instante, ao que lhe respondi que, se o Estado abandona seus cidadãos, há aqueles que ainda têm consideração pelos infortunados e que conhecia Pedro há cerca de trinta anos. Fechou o semblante e levou o pobre homem.

A responder, pois, à atenciosa leitora, insiro o texto escrito a mão em 1979 nesse velho caderno: “Pedro é um andarilho. O seu aspecto exterior é o de um mendigo. Roupas rasgadas, maltrapilho que é, Pedro não vive da mendicância voluntária. Seu rosto está permanentemente encoberto por um negrume que faz lembrar os que sofrem as queimaduras das geleiras. A roupa é usada até o desgaste total. Em Pedro tudo isso não chega a chocar.

A primeira diferença entre Pedro e os seus milhares de colegas é o porte. Percebem-se traços aristocráticos atavicamente ligados a um passado abastado. Quando caminha, Pedro tem o corpo ereto e um olhar para a frente, altivo, perdido num mundo de simbolismos.

Há tempos observo Pedro andando sem quase parar pela Avenida Santo Amaro. Disso resulta pés plenos de chagas, protegidos por uma estranha sandália.

A primeira vez que conversei com Pedro foi numa noite quando, ao voltar a pé para casa após visita a um amigo, encontrei-o sentado numa calçada. Perguntei-lhe se necessitava de algo. Disse-me que não. Indaguei-lhe se tinha fome. Não, foi a resposta. Intrigava-me seu caminhar eterno durante os dias, exposto ao sol e à chuva. Indaguei-lhe novamente sobre o porquê da marcha. Respondeu-me, evasivamente, que à noite poderia tropeçar e da queda ele não gostava. Compreendi melhor seu porte altivo durante o dia. Dei-lhe uns poucos trocados. Agradeceu-me com um ‘bom dia, amigo’. Nada pedira. Perguntei-lhe o nome. Pedro dos Santos, a resposta.

Muitas outras vezes encontrei Pedro, encostado num poste entre a Av. Santo Amaro e a Rua Jesuíno Maciel. Quando o farol permite, dou-lhe alguma coisa. A resposta é a mesma ‘Bom dia, amigo’. Nada pede.

Hoje senti-me gratificado. Ouvi de Pedro respostas às minhas indagações. Duas da tarde vinha eu andando pela avenida de Pedro, quando com satisfação o encontro. Saúdo-o com afeto. Retribuiu-me em silêncio, com um sorriso dos bem aventurados. Fui mais longe e indaguei: ‘Pedro, por que você anda tanto?’ Disse-me ‘Eu busco a cadência’. Nova questão ‘Que cadência, Pedro?’  Meu irmão continuou:  ‘Andando eu vivo, sinto o sangue percorrer o meu corpo inteiro e não posso parar. Procuro então a cadência’. O seu destino me intrigava ‘Onde você dorme? Nova resposta  ‘Embaixo da ponte, o senhor sabe, as pontes têm vida. Elas vêem passar toda a cidade’. Indago-lhe: ‘E quando faz frio?’ Pedro, instantâneo: ‘Há jornais, caixotes, papelões. Os jornais têm vida. Não tenho medo. Só temo as correntes que existem sobre nós’. Não consigo explicações mais detalhadas.

Olho para os pés sangrando de Pedro e prometo-lhe para o dia seguinte, ao meio dia, sapatos e roupas. Apenas sorri. Pedro nada solicita. Pedro continua a andar. Seu porte ereto o levará um dia ao encontro da cadência.

Lembro-me da noite anterior. Padre Aquino, na reunião mensal, falou sobre Cristo e a respeito da ideia que podemos fazer dele. Para uns, o som de uma nota musical; para outros  motivações diversas. Para Pedro, o apóstolo de pés inchados e feridos, a palavra do Filho bastava. Para Pedro, o apóstolo perdido da cidade, a cadência é o destino. Certamente encontrar-se-á em Deus, a cadência plena, inefável”. Escrito a tinta, o texto finda, e palavras a lápis do punho de uma de minhas filhas foram acrescentadas: “Pedro é bom! Pedro é gente como nós”.

On how I happened to recover a passage written 32 years  ago ― here transcribed in its entirety ― about Pedro, the wanderer, a character already portrayed in this blog.