“No 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”

O homem olímpico não ignora o seu contrário,
não foge à sua dor: utiliza-a como a um instrumento de perfeição. 
Agostinho da Silva

O culto às figuras que marcaram determinada área na busca incessante direcionada ao conhecimento e ao caminhar pela História de maneira integrada e harmoniosa deveria ser constante absoluta. Nem sempre o é e tantas personalidades que realizaram obras meritórias permanecem em penumbra constrangedora, no mínimo.

Bem houve a Imprensa da Universidade de Coimbra publicar o resultado de projeto acalentado pelos professores e musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso e Margarida Lopes de Miranda, intencionados há longa data em prestar homenagem à musicóloga Maria Augusta Barbosa (1912-2012), figura singular na musicologia portuguesa (“Sons do Clássico – no 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”. Coordenação J.M. Pedrosa Cardoso, Margarida Lopes de Miranda, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, Dezembro de 2012, 280 págs).

Para que o leitor apreenda a importância da homenageada, transcrevo o breve perfil traçado na “Abertura” do livro por seu mais próximo discípulo, Doutor Pedrosa Cardoso:

“Maria Augusta Barbosa investiu grande parte dos seus anos no estudo: aos 31 anos, após a conclusão dos cursos superiores de Piano e Composição no Conservatório Nacional de Lisboa, concluiu a sua licenciatura em Ciências Musicais na Universidade Humboldt de Berlim e aos 58 obteve o grau de Doctor Philosophiae, área de Ciências Musicais, na Universidade de Colônia.

No Conservatório Nacional fez duas etapas: a primeira, por força da II Grande Guerra, durante 13 anos, aceitando um convite do Diretor, Dr. Ivos Cruz, e a segunda, durante 9 anos, compelida pelo Diretor Geral do Ensino Superior a regressar ao país.

O resto de sua vida foi o ensino universitário: primeiro, na Universidade Nova de Lisboa, onde aliás viu reconhecido o seu doutoramento e onde criou a primeira licenciatura em Ciências Musicais em Portugal, aí permanecendo até sua jubilação (1982). Em seguida, gratuitamente, na Universidade de Coimbra e na Universidade de Lisboa, prestando ainda notável contributo na Universidade Autónoma e na Universidade Lusíada. E foi em plena actividade nas Universidades de Coimbra e Lusíada que viu chegar ao fim, em 2001, aos 89 anos, inesperadamente para ela, a sua carreira universitária”.

Para a elaboração do livro, os coordenadores buscaram a colaboração de especialistas que tiveram relação com a ilustre homenageada, seja através de estudos conjuntos, ação pedagógica ou laços de amizade. Os textos inseridos compõem-se harmoniosamente e estudiosos da dimensão de  Mário Vieira de Carvalho, Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Gerhard Doderer, entre outros, oferecem contributos de valor. Dois artigos dos coordenadores têm igualmente grande relevância. Há sequência histórica nas contribuições de Vieira de Carvalho e Castelo-Branco, o primeiro a tratar da “Investigação em Música no Ensino Superior”, traçando, com a competência que lhe é peculiar, as origens da organização da musicologia no sentido mais amplo e das ciências musicais no âmbito da universidade e Salwa El-Shawan a buscar desenvolver o tema em torno da “Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa: os Primeiros Anos”, tributo à homenageada, que criou o curso de Licenciatura mencionado acima, ponto de partida para o desenvolvimento da música como ciência nas universidades portuguesas.

Destacaria a contribuição de Pedrosa Cardoso, que sintetiza em texto fundamental – “Em Busca do Peculiar na Música Sacra Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” – parcela de seus aprofundamentos que resultaram em livros essenciais. Em posts anteriores já pormenorizei algumas de suas obras relevantes.

Tiveram os doutores Pedrosa Cardoso e Margarida L. de Miranda a feliz ideia de inserir dois textos da homenageada, referentes a uma breve autobiografia e ao período em que passou pesquisando em Berlin durante a Segunda Grande Guerra. Recolhida ao Lar “Casa de Saúde e Repouso da Amoreira” em 2002, após problemas físicos, Maria Augusta Barbosa ditaria esses textos à fiel Sónia de Carvalho, funcionária do estabelecimento. Os títulos foram dados pelos coordenadores. No primeiro relato, “As Curvas de Meu Percurso”, Maria Augusta Barbosa evidencia a vocação plena à pesquisa, sem subterfúgios. Uma vida inteira dedicada à Música, ao estudo aprofundado, ao ensino em alto nível. No segundo, “Debaixo do Fogo: A Música em Tempo de Guerra”, a homenageada descreve os tempos difíceis vividos de 1939 a 1943 em Berlim “… Facilmente me adaptei a um estudo absorvente no início de uma guerra ainda relativamente calma, evidente apenas no racionamento inteligentemente elaborado e obrigatoriamente seguido, além de alguns bombardeamentos nocturnos, durante os quais os estrangeiros, ao contrário dos nacionais, não eram obrigados a recolher aos abrigos. Aproveitei portanto essas vigílias forçadas para avançar no estudo das novas matérias e preparar os trabalhos marcados, entre os quais as longas transcrições de paleografia musical”. Tem-se nessas frases o sentido pleno do denodo e da obstinação voltada à mais precisa investigação.

Generosa, Maria Augusta Barbosa doaria todo seu acervo à Universidade de Coimbra (2003), onde foi uma das fundadoras, em 1986, do Mestrado em Ciências Musicais na Faculdade de Letras. Como bem se expressou, “concretizou-se aquando da minha fixação na residência actual”, a Casa de Repouso já citada. Aos c. 8.000 livros, mais farta documentação e registros fonográficos, somar-se-ia seu piano de concerto, um Bechstein de 3/4 de cauda, que hoje se encontra na Biblioteca Joanina da Universidade. Tive a honra de por duas vezes (2004 e 2005) nele interpretar meus recitais, sendo que o primeiro inteiramente dedicado ao notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), festejado por ocasião do tri-centenário.

O magnífico e justíssimo tributo à grande mestra servirá de imediato para a lembrança mais acentuada de uma das figuras fundamentais da música em Portugal no século XX. Seus numerosos e competentes ex-alunos, espalhados por terras lusíadas e alhures, saberão reverenciar Maria Augusta Barbosa ad eternum.

This post is an appreciation of the book Sons do Clássico (Sounds of Classic), written by a team of experts as a tribute to Maria Augusta Barbosa on the 100th anniversary of her birth. Musicologist, university teacher, founder of the Music Sciences Department of Universidade Nova de Lisboa, Maria Augusta was one of the most significant figures in music in Portugal in the last century.