Quando Pergunta Leva à Reflexão

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.
Osório Duque Estrada

Afonso foi meu colega na Faculdade de Direito de Pouso Alegre, Minas Gerais. Não o via desde os anos 1980. “Lembra-se de mim?”, perguntou-me num dos corredores de supermercado. “Sim… estou a me lembrar”, respondi-lhe, não sem ligeira hesitação. Três décadas modificam nossos traços, mas reencontramo-nos prazerosamente. Aproveitamos para um curto no Natural da Terra e lembranças e trajetórias serviram como motivação de conversa animada. Afonso é advogado aposentado, mas tem lá seus hobbies, entre os quais a criação de canários belgas e a pesquisa relacionada à região da Mogiana, onde tem raízes profundas.

Afonso tem ouvido algumas de minhas gravações que ocasionalmente a Cultura FM retransmite. E veio uma pergunta de interesse relacionada ao Hino Nacional. Confessou-me que ficou profundamente emocionado com a final da Copa das Confederações, em que a multidão que lotou o Maracanã cantou com orgulho o Hino Pátrio e a questão para ele se resumia no impacto forte que essa criação musical causa quando tocado. Perguntou-me ainda a causa de um hino tanto sensibilizar as massas, seja qual for a música, apesar de alguns bem “feinhos”, como afirmou.

Mencionei, em post bem anterior, sábia argumentação do musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928-1989), que escreveria que a qualidade de um hino não é o importante, mas sim o efeito que ele produz em um povo. Nada mais correto e Afonso tem razão, pois há hinos bem “ruinzinhos”, inclusive de países de “alto padrão” sócio-econômico-cultural. Se a Marselhesa da França, o God save the King da Inglaterra, o norte-americano, assim como outros hinos diferenciados, entre os quais o da Internacional Socialista, cuja música é do belga flamengo (Gent) Pierre De Geyter (1848-1932), há aqueles que parecem verdadeiras marchinhas tocadas em coretos espalhados pelo interior e que trazem a alegria para as cidades. Meu pai cantava na íntegra o hino de Portugal, também conhecido como A Portuguesa, composto por Alfredo Keil (1850-1907). A letra é do poeta Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931). Massas humanas se emocionam ao ouvir “seus” hinos, mormente em momentos sensíveis por que passam as nações: guerra, tragédias, júbilos… O hino agrega, faz com que diferenças momentaneamente sejam esquecidas. Não por outro motivo clubes de futebol, como exemplos, têm lá seus hinos, e os adeptos, tantos fanáticos, memorizam-nos, muitas vezes de maneira bem mais completa do que as primeiras frases do hino do país. Seria possível supor que a relação com o hino de um clube é quase que diária e a de natureza pátria atende a momentos menos frequentes. Lembremo-nos de Lamartine Babo (1904-1963), o talentoso compositor popular carioca que compôs 11 hinos para os times participantes do Campeonato Carioca de Futebol, sendo que em um só dia os das equipes mais conhecidas do Rio de Janeiro estavam prontos.

A longa trajetória do hino através da história fê-lo passar por várias destinações. Há menções anteriores às invocações encontradas nas tumbas egípcias. Hino e poesia tinham relação intrínseca na antiga Grécia e os hinos que integram as sete horas canônicas do ofício divino na liturgia da Igreja remontam aos tempos dos apóstolos. Hino e Salmo acompanham os ritos da Igreja Católica desse período ao presente.

Já em torno da Revolução Francesa (1789), hinos consagrados às várias manifestações populares eram cantados ou entoados. Ao ganhar o “status” de hino nacional, o gênero se sedimenta e tornar-se-ia um dos símbolos cultuados pelos povos de cada nação.

Pode-se constatar que mais há fato relevante, positivo ou não, mais o hino é cantado com ênfase, entusiasmo e emoção. Estou a me lembrar de que estava em Paris poucos meses antes da comemoração do bi-centenário da Revolução Francesa. À noite, e por vezes pela madrugada, grupos percorriam as ruas cantando a Marselhesa, acompanhados por instrumentos de percussão.

Seria possível deduzir que, para haver interação, independentemente da qualidade musical do hino, há a necessidade de que ele possa ser cantado por todos. Para tanto, melodias facilmente identificáveis corroboram o aprendizado quase que imediato. Nessa Torre de Babel em que se abrigam inúmeras tendências da música contemporânea dita erudita, com ou sem o auxílio da eletroacústica, em tantas delas desaparece a “apreensão” melódica, ou ao menos a  inteligibilidade. A elucubração mental se instaura, tornando-se, por vezes, difícil distinguir joio do trigo, o que não acontece com a música do passado.  A presença do hino reverencia a tradição sem possibilidade de ruptura, pois destina-se às multidões, e essas não saberiam entoar um hino sem uma melodia simples. A garantia é plena. Sob outra égide, distingue-se o hino das “músicas” em altos decibéis apresentadas por grupos pós-rock, que inebriam massas em histeria que buscam na vociferação imitar ídolos de barro, “músicas” essas logo esquecidas em detrimento de outras, apresentadas por grupo gritante recém chegado. Como bem afirma Mario Vargas Llosa em “La Civilización del Espectáculo” (brevemente neste espaço farei resenha): “o indivíduo se desindividualiza, torna-se massa e, inconscientemente, regressa aos tempos primitivos da magia e da tribo”.

Sou um conservador em termos de hino pátrio. As inúmeras descaracterizações do Hino Nacional do Brasil, o estranho e desrespeitoso arranjo apresentado imediatamente após a morte do Presidente Tancredo Neves (1910-1985), cantado com portamentos de mau gosto e de intencional arbitrariedade, abriram as portas, à la manière do universo fantástico de Hieronymus Bosch, às mais díspares versões, caricatas tantas delas, desfigurando a essência de um símbolo que mereceria, sempre, o mais absoluto respeito. O mesmo se passa com o belo Hino dos Estados Unidos, tristemente banalizado antes de determinadas apresentações desportivas. E o mais grave, fato que corrobora a posição de Mário Vargas Llosa, que faz duras críticas a essa total deterioração da cultura, o povo se habitua. E todo o mal está feito. Se essa deturpação se faz presente nas mais diversas roupagens, não desconsideremos uma outra alteração, no caso em absoluto outro contexto. Trata-se da Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Louis Moreau Gottschalk (1829-1869). Está-se em outro patamar criativo e as virtuosísticas variações sobre o tema do hino composto por Francisco Manuel da Silva (1795-1865) têm sido interpretadas por inúmeros pianistas e foram imortalizadas pela excelsa Guiomar Novaes (1894-1979/vide YouTube).

Os caminhos de nossas vidas são incertos. Não sei se tornarei a rever Afonso, mas nossa prazerosa conversa serviu para que pensasse num tema tão presente em nossas vidas.

Listening to the Brazilian national anthem sang with one voice by spectators that crammed into the Maracanã stadium at the final match of the Confederation Cup led me to reflections on the wide array of contexts our anthem is played and how its use has been trivialized and distorted by the media in the last decades.