Navegando Posts publicados em novembro, 2015

Dualidade Perigosa

Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
Há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.
Cecília Meirelles

Os terríveis acontecimentos ocorridos em Paris na noite de 13 de Novembro aterrorizaram um país que poderia até acreditar que os atos terroristas contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, aos 7 de Janeiro deste ano, pudessem ser apenas consequência de charges ofensivas ao profeta Maomé. A ação contra o semanário estava longamente urdida e o lamentável episódio já deveria ser entendido pelos mentores da tragédia como um extraordinário meio de divulgação. E o foi.  Houve comoção mundial e os milhões que acorreram às ruas testemunharam solidariedade com o povo francês. Contudo, os derradeiros passos do terror seguem uma estratégia nítida, calculada, pragmática, radical, a ter como desiderato a submissão e destruição da cultura ocidental. Deveras é o terrorismo islâmico uma ação basicamente voltada à França? É-o, na medida que o país abriga hoje vários milhões de muçulmanos e, com a imigração desenfreada que ocorre, logicamente terá essa quantidade aumentada; e é-o, se considerado for que há um número desconhecido de terroristas infiltrados em solo francês, nascidos em França, pertencentes à comunidade islâmica laboriosa e confundindo o cotidiano parisiense nos recentes casos. Inimigos ocultos provocando a catástrofe.

Tenho acompanhado diversos artigos publicados, sobretudo em França e na Inglaterra, e conversado com amigos nativos que vivem na Europa. Opiniões contrastam ao considerar o contingente oriundo da África do Norte e do Médio Oriente como pacífico. Foge das atrocidades que pululam em várias regiões, contudo não se refugiam em países muçulmanos, e há dezenas deles. Razões existem, e a primordial é a total ausência de democracia nesses países, todos sujeitos aos regimes ditatoriais. Um vídeo húngaro recente focaliza imigrantes das regiões assoladas por guerras e desajustes, fora de um comboio, todos homens da juventude madura, não aceitando garrafas de água para os passageiros, chutando-as ou jogando-as diretamente nos trilhos. Razão, continham no rótulo a Cruz Vermelha da organização humanitária. Preocupante presságio, pois demonstram a total intolerância com o símbolo do cristianismo, religião dominante na Hungria, país que os estava recebendo, ao menos de passagem. O precioso líquido não chegou às crianças, mulheres e idosos. É fato que o agigantar terrorista acentuou-se durante e após as ações desastrosas dos ex-presidentes Bush (pai e filho) e da presente e pusilânime gestão Obama. Recrudesce a tensão, acirra-se a intolerância de muitos jovens nascidos na Europa, mas muçulmanos, e de outros tantos que estão a chegar em ondas contínuas. A aceleração, sem possibilidade de estancamento a médio prazo, dessa inédita “invasão” e o recrutamento (lavagem cerebral) de milhares de crianças e jovens para atividades insanas, tanto in loco como em França e na Bélgica desnortearam o Ocidente. E o que dizer dos “estagiários” que se dirigem à Síria e ao Iraque para se juntarem aos fundamentalistas do EI. Tenho amigos diletos marroquinos e descendentes que vivem na Bélgica e se integraram muitíssimo bem ao país que os abrigou. Contudo, há os intolerantes, e a mais absoluta preocupação está a se instalar nas populações da Bélgica, da França e de outros países da Europa, como também dos Estados Unidos.

Voltando-se ao autoproclamado Grupo Estado Islâmico, está ele disperso e muitos são os aglomerados terroristas espalhados pelo norte da África e pelo Médio Oriente, o que torna bem mais difícil uma incursão terrestre. Teriam de ser muitas frentes de infantaria. A derrocada dos USA na Guerra do Vietnã (1955-1975) não foi também pelo fato de que os “inimigos” surgiam de todos os lados, inclusive cavando túneis? É só lembrarmos da grande base norte-americana de Da Nang e das incursões subterrâneas dos vietcongs, mormente à noite. Mas, no caso do EI deve haver um cérebro, um líder a difundir decisões, tanto nos extermínios de inimaginável barbárie, in loco, dos “prisioneiros” que professam outras crenças, como no doutrinamento de crianças e na “escravidão” das mulheres. Espalhar o terror faz parte dessa engrenagem que revive os períodos mais obscurantistas da história. O Boko Haram na Nigéria declarou lealdade ao EI, outros grupos que espalham o terror na Somália, no Iêmen e outras terras devem ter já professado “obediência”, o que induz a pensar nesse “cérebro” que comanda atos terroristas. Seria possível acreditar num líder com colegiado rigorosamente amestrado. Ele deve existir, tem nome. Ratificando, quantos já não são os militantes infiltrados nessa leva que “invade” a Europa, impulsionados por essas lideranças ocultas?

Em França, o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” tem sua origem no primeiro artigo da “Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen”, de 1789, ano da Revolução Francesa. Explicitado bem posteriormente na “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, de 1948, também em seu primeiro artigo. Nenhum país ocidental apreendeu de maneira mais ampla o tríptico do que a própria França, que o criou. Seria possível entender que esse extraordinário lema, orgulho do povo francês, esteja hoje, devido à abertura que é característica da França, sendo uma das causas do acúmulo de atentados. As três palavras sacralizadas jamais serão captadas em sua essência essencial por fanáticos que, nascidos em solo francês, dirigiram-se às tendências aniquiladoras. A lavagem cerebral existe desde a antiguidade e, para aqueles que a ela são submetidos, ignorar quaisquer princípios humanitários e de liberdade é “lei”.

A apreciação deste lado sul do Atlântico leva-me a considerar um fato irresponsável e, sobretudo, a revelar desprezo pleno pela cultura tradicional. Após os atentados de 13 de Novembro, o jornal satírico Charlie Hebdo tem publicado charges com dizeres atestando diferenças conceituais profundas, mas provocativas, pois nestes divulgam  que, enquanto o EI tem armas, a França tem Champanhe e mulheres fáceis. Numa das secções do hebdomadário, “En Kiosque”, (18/11), há uma charge “Paris, capitale de la perversion. Faites la perversion, pas la guerre”. A charge apresenta um casal despido a sorrir e o homem a salientar o dedo médio em posição ofensiva. Não tem o semanário a procuração de notáveis franceses que forjaram a cultura do país através dos séculos, como Ronsard, Descartes, Molière, Corneille, Racine, La Fontaine, Voltaire, Couperin, Rameau, Berlioz, Delacroix, Victor Hugo, Balzac, Monet, Gaughin, Cézanne, Rodin, Matisse, Eiffel, Pasteur, Pierre Curie, Fauré, Debussy, Ravel, Verlaine, Mallarmé, Saint-Exupéry, Bernanos, Malraux, Jankélévitch e uma infinidade, friso, infinidade de grandes vultos, testemunhando que os valores essenciais franceses são outros, humanistas, artísticos e científicos e que colocam a França num patamar criativo rigorosamente singular. Sim, a mulher fácil, a perversão e a libertinagem existem em França e em todos os recantos do planeta; e o Champagne (em charge recente) é delicioso produto, mas produto. Demonstra o semanário leviandade a desprezar consequências fatais. Pseudo-humor, de mau gosto, inoportuno e reducionista. Não seriam esses os elementos fulcrais para a realização dos atos insanos terroristas, mas sem dúvida são provocativos. Estariam a evidenciar que o semanário teria perdido o rumo.

Infelizmente a França estará sujeita a futuros atos atrozes, hélas. As células cancerosas se expandem em metástase, pois no interior do país. Não há consenso quanto ao tratamento, mas ele tem de ser imediato e sem tréguas. A França sempre soube reagir, seu povo preza valores culturais, ora ameaçados. Esperemos que a presidente do Brasil, que há pouco mais de um ano, na abertura das sessões da ONU, propunha um “diálogo” com os terroristas do EI, tenha uma outra postura e se coloque à disposição, juntamente com importantes líderes de países do hemisfério norte que já se pronunciaram, para a ação conjunta, diplomática que seja. Esperemos…

The reflections of someone living on the other side of the Atlantic on the terrorist attacks last 13 November in Paris, something the press has been describing as a clash between religious extremism and free speech – a threat to the entire world, not only to France – and the deplorable provocations staged by the satirical newspaper Charlie Hebdo.

 


Pianista e Professor Notável

Mais eu avanço no trabalho artístico
mais eu percebo
que, além de todos os conhecimentos que possamos ter,
é, em última análise, a nossa concepção sonora
que influenciará de maneira a mais importante a nossa recriação.
Sebastian Benda

Não poucas vezes comentei neste espaço a respeito de intérpretes extraordinários que edificaram carreiras fora do grande circuito, da mídia e da necessidade dos holofotes. Nunca me esqueço de que, certo dia, o ilustre pianista e professor francês Jean Doyen (vide blog: Jean Doyen – 1907-1982 – A Interpretação Inefável, 31-08-2007) disse-me,  durante os estudos em Paris sob sua orientação (1959-1962), “ser um bom ou ótimo pianista não significa amar o brilho e as viagens”. Ficou gravado.

Tinha eu 17 anos e participei do Curso Internacional de Férias organizado pela Pró-Arte em Teresópolis. Estávamos em 1955. Ano em que lá compareceram, também como alunos, o saudoso Ney Salgado, Isaac Karabtchevsky, Henrique Gregory, Sandino Hohagen, Manuel Veiga, Clara Sverner, Júlio Medaglia (sucessivos anos) e tantos jovens que prosseguiram suas carreiras vitoriosas. Certo dia, ao ouvir Estudos de Chopin magnificamente interpretados, cheguei-me à janelinha de vidro da porta de uma sala de aulas e passei a escutar Sebastian Benda, pianista suíço que se radicara há pouco no Brasil. Estava a ouvir a tradição, e Benda se preparava para recital durante o Curso de Férias. Até seu regresso à terra natal em 1981, ao lado da esposa, professora e pedagoga Luzia do Eirado Dias e de seus cinco filhos músicos, dedicou-se com amor e competência à atividade musical, obedecendo a um DNA sonoro que remonta aos tempos de J.S.Bach.

Sebastian Benda deu contributo valiosíssimo ao nosso meio musical. Como pianista, atuou seguidamente em recitais solo, como solista de concertos com orquestra e como camerista. Quantas não foram suas apresentações com a irmã violinista Lola Benda? Incontáveis. Como professor, colaborou efetivamente junto às Universidades Federais de Santa Maria (Rio Grande do Sul) e da Bahia. Ao fixar residência em São Paulo, empenhou-se para o aprimoramento de nossas programações e pela formação de jovens pianistas.

Quão poucos se lembram de Sebastian Benda no Brasil, apesar de seus 29 anos aqui vividos, a contribuir com nossa “ascensão”? Louve-se a Universidade Federal de Santa Maria ao promover o Concurso para Jovens Músicos em muitas edições e a homenagear o ilustre professor da Instituição durante anos. Faz-se necessário um breve apanhado biográfico de Sebastian Benda. Nascido na Suíça, desde a infância dedicou-se ao piano e à composição. Músicos notáveis, como Arthur Honegger (1892-1955), Frank Martin (1890-1974), Alfredo Casella (1883-1947) e Joaquin Nin (1879-1949) saudaram criações do adolescente. Aos 11 anos já se apresentava com a irmã Lola em recitais solo, sendo que dois anos mais tarde ingressaria no Conservatório de Música de Genebra. Após findar seus estudos no renomado Instituto com a obtenção do “Prix de virtuosité”, a convite do extraordinário pianista Edwin Fischer (1886-1960) passaria a estudar com essa lenda do piano durante sete anos, apresentando-se inúmeras vezes com o mestre em ciclos de concertos. Iniciava brilhante carreira que o levaria a 40 países da Europa, Ásia e Américas.

Após quase três décadas no Brasil, o desencanto com os rumos que o país trilhava e a violência crescente – a família sofreu assalto – motivaram o retorno à Europa em 1981, juntamente com todos os seus. Nomeado professor na Escola Superior de Música e Artes Cênicas de Graz, Áustria, tornar-se-ia Reitor até 1994. A segunda fase europeia é marcada por intensa atividade como pianista, professor de cursos de interpretação e gravações.

O álbum a conter dois CDs com registros fonográficos, que se estendem de 1961 a 1994, gentilmente enviado pela viúva do artista, privilegia autores que lhe foram caros. Toda a tradição que lhe foi passada por Edwin Fischer, e a ter como ascendentes Martin Krause (1853-1918), Franz Liszt (1811-1886), Carl Czerny (1791-1857) e Ludwig van Beethoven (1770-1827), pode ser aferida através de magistrais interpretações de Sebastian Benda. Os 33 anos que separam as gravações apenas ratificam uma notável coerência interpretativa, voltada ao absoluto rigor quanto às estruturas da escrita, liberdade sem jamais ultrapassar o limite que pode conduzir à arbitrariedade, lirismo intenso e comovente, virtuosidade natural, também sem qualquer sentido de exibicionismo. Há continuada transparência de uma personalidade que apreende a essência e revela a ligação amorosa com as obras gravadas. Realmente, dois CDs que entendo magníficos e que contêm algumas obras fundamentais do repertório para piano.

O primeiro CD apresenta inicialmente as célebres 32 Variações sobre um tema original em dó menor (1806), de Ludwig van Beethoven. Obra quase que “obrigatória” nos repertórios, mormente em meados do século XX, as brevíssimas e contrastantes variações são sempre um desafio para o pianista nessa constante mudança de moods. Benda não apenas capta a essência de uma diversificada escrita, como revela dado fundamental, o respeito à tradição, friso sempre. Reflexivas, virtuosísticas, dinamicamente bem elásticas, todas as características da obra lá estão e a gravação serve como um modelo a ser seguido, se a compararmos com outros registros impecáveis deixados por alguns de seus ascendentes.

Comovente a leitura que Sebastian Benda realiza da Sonata em Si Bemol Maior (D. 960), de Franz Schubert (1797-1828). Obra de síntese (1828), essa magistral Sonata, uma das obras essenciais da literatura pianística em todos os tempos, tem por parte de Benda uma das mais comoventes interpretações registradas, comparáveis às legadas por Wilhelm Kempff (1895-1991), Arthur Rubinstein (1887-1982) ou à contemplativa de Sviatoslav Richter (1915-1997), esta, sobretudo no primeiro andamento, Molto moderato. Se Benda tivesse apenas registrado uma só obra em sua bela trajetória, a Sonata em questão, bastaria essa gravação para fixá-lo na história da interpretação musical. O equilíbrio que o pianista evidencia em toda a longa Sonata é notável. Execução rigorosamente inefável durante o transcorrer dos quatro andamentos. Primoroso o controle do extenso e sublime Molto moderato. A concentração expressiva contida no Andante Sostenuto - a manutenção da atmosfera nos movimentos lentos é sempre um desafio – é seguida pela jocosidade do Scherzo, Allegro vivace con Delicatezza. Temos por parte de Benda o mais absoluto domínio estilístico. Allegro ma non troppo tem compreensão plena. Humor, vitalidade e modulações finamente tratadas estão presentes nesse andamento final. Friso, execução referencial para a geração que queira incorporar essa Sonata escrita no ano da morte do compositor, em que todos os atributos apreendidos da vasta produção schubertiana lá estão.

Clique para ouvir Sebastian Benda ao piano:

Franz Schubert: Scherzo, Allegro vivace com delicatezza da Sonata em Si bemol maior (D. 960)

Dos Tre Sonetti de Petrarca (1304-1374), Benda apresenta o 104, possivelmente o mais frequentado pelos pianistas. O artista suíço cria uma atmosfera rara, lírica e intensa, a proporcionar à excelsa obra uma leitura que faz jus à qualidade literária. Sebastian Benda comenta: “Liszt não descreve o poema, mas pinta os estados d’alma que sentiu na leitura do poema”.

Do universo pianístico de Robert Schumann (1810-1856), uma de suas mais sensíveis criações é o conjunto das oito Fantasiestücke, op 12 (1838). Pode-se aferir a identidade absoluta que Sebastian Benda tem com o compositor alemão. Uma compreensão impecável dessa dualidade soberana no pensamento de Schumann: de Eusebius, lírico, poeta e sonhador, e do arrebatado e extrovertido Florestan, personagens do ideário do possivelmente mais romântico entre os compositores. Tradição e talento singular podem ser aferidos na totalidade interpretativa da coletânea. Realmente comove a qualidade do tratamento que Benda imprime à agógica e às tantas gradações dinâmicas finamente dosadas, só possíveis, nesse nível, em um grande mestre do piano.

Clique para ouvir Sebastian Benda ao piano:

Os 29 anos vividos no Brasil fizeram-no integrar-se à criação de alguns compositores brasileiros. Villa-Lobos (1887-1959), Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989) tiveram obras presentes em recitais de Benda. Foi solista do Concerto para piano e orquestra de João de Souza Lima (1898-1982). Sebastian Benda inicia o segundo CD com algumas das mais célebres criações de Villa-Lobos: Alma Brasileira, Festa no Sertão, Lenda do Caboclo, Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco. Sempre defendi a posição de que a geografia pode ajudar o intérprete na execução de obras de seu país, mas jamais será determinante. Sebastian Benda soube apreender as rítmicas ricas e os moods inerentes nas composições de Villa-Lobos.  A leitura que o pianista suíço faz do repertório em apreço é intensa, plena de luminosidade, esfuziante, das mais autênticas na discografia de Villa-Lobos.

Clique para ouvir Sebastian Benda ao piano:

De seu ilustre conterrâneo Frank Martin, professor e grande amigo, Sebastian Benda tem registrado, no álbum “Memoires”, oito Préludes para piano. O intérprete jamais deixou de prestar tributo à obra do compositor e gratidão ao grande mestre. Gravaria a integral para piano de Frank Martin, inclusive a Balada para piano e orquestra sob a regência do compositor. Benda se expressa sobre o mestre: “Frank Martin foi para mim não somente o compositor incomparável cujas obras sensibilizam, por sua emoção, os públicos mais diversos de diferentes continentes, mas também o mestre, o professor, o conselheiro, o amigo e, enfim, o regente de suas obras, com o qual eu tive a honra de colaborar. Martin foi um compositor que, apesar da sua constante pesquisa, não se deixou levar pelas correntes, ficando fiel a si próprio e aos seus princípios estéticos”.

Clique para ouvir Sebastian Benda ao piano:

Finaliza o preciosíssimo álbum “Memoires” a monumental obra do compositor russo Modest Moussorgsky (1839-1881), Quadros de uma Exposição. Interpretação maiúscula, viril, expressiva, a apresentar o profundo senso estilístico do intérprete. Da tradição austro-germânica em obras de Schubert e Schumann, Benda nos lega, sob outra égide, uma visão grandiosa dos Quadros... Referencial.

Há que se lamentar a memória supérflua que se acentua em nosso meio cultural. O Brasil teve a honra de ter em seu solo, durante quase três décadas, um artista da magnitude de Sebastian Benda, que honraria, sob outros aspectos, o país que o abrigou, casando-se com professora e musicista brasileira, tendo cinco filhos que se tornaram músicos e formando gerações de pianistas e professores no Brasil. Seu nome é pouco lembrado. Não aconteceu o mesmo com o excelente pianista e professor alemão Fritz Jank (1910-1970), radicado em São Paulo, que se notabilizou a interpretar diversas vezes na cidade as 32 Sonatas e os cinco Concertos para piano e orquestra de Beethoven, assim como pela qualidade plena no segmento acompanhamento, inclusive dialogando com alguns dos mais renomados artistas internacionais que se exibiam em nossas terras? Se a Academia abrigou estudos mais aprofundados sobre Fritz Jank, fundamental para a cultura paulistana, hélas, esses trabalhos finalizam nos arquivos das universidades e geralmente são olvidados ad eternum.

Finalizaria a dizer que nossos contatos com Sebastian Benda sempre foram cordiais. Ele e a família moraram nos últimos anos, antes do regresso à Suíça, em nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Nesse período várias vezes nos visitamos. Tivemos, Regina e eu, o prazer e a alegria de participar com Benda da série dos concertos de J.S.Bach para dois, três e quatro pianos, no Teatro São Pedro, sob a direção de Eleazar de Carvalho, na década de 1970.

Fica neste espaço meu registro a lembrar o grande músico Sebastian Benda, após ouvir o extraordinário álbum “Memoires” (Genuin classics  – Artist Consort, Germany, 2013). Frise-se, em bela apresentação e a ter encarte substancioso em inglês, alemão e português. Recomendo-o vivamente.

This post is my tribute to the great Swiss pianist and composer Sebastian Benda, who lived in Brazil from 1952 to 1981. His widow very kindly has sent me his double album Memories, with works by Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt, Villa-Lobos, Frank Martin and Mussorgsky. Remarkable performances, with rigor as to writing structures, freedom without arbitrary choices, intense and moving lyricism, virtuosity without overplaying. A fascinating listening of an outstanding interpreter, an authority on the great art of the piano, unfortunately highly underestimated in the country he adopted for almost three decades.

Realização Estimulante

Talvez não tenha cada um a sua mundividência:
mais certo seria dizer-se que tem a mundinvenção,
e que só essa é real.
Agostinho da Silva

O filme de curta-metragem tem adquirido a cada ano uma multifacetada abrangência. A sua extensão varia muito e, mais habitualmente, veem-se durações inferiores a vinte minutos, podendo, contudo, atingir minutagens superiores. Concentrados em seus temas diversos, que compreendem política, humor, aspectos sociais, denúncia e protesto, pesquisa experimental, documentário e, bem acentuadamente, a animação, o curta traduz a máxima latina multum in minimo e requer do diretor habilidades extras para a exposição criteriosa em tempo determinado. Festivais existem pelo mundo inteiramente dedicados ao curta-metragem, que, mercê de custos mais modestos e direções abrangendo também estudantes da área, são bem concorridos. O desenvolvimento acelerado da internet e da televisão a cabo tem dado guarida ao curta-metragem e diariamente é acrescentada às redes de ambos os meios de comunicação quantidade expressiva dessa ascendente categoria de filme.

A premissa faz-se necessária, pois a Unibes Cultural abrigou em seu auditório, entre os dias 5 e 6 de Novembro, um importante Festival  dedicado aos curtas metragens portugueses.

Preliminarmente transcrevo o que consta no “libreto” a informar o intuito do Festival, que tem percorrido vários países: ” O NY Portuguese Short Film Festival (NYPSFF), organizado pela primeira vez em Junho de 2011, foi o primeiro Festival de curtas-metragens portugueses nos Estados Unidos. O Festival foi produzido e apresentado pelo Arte Institute e mostra curtas- metragens de ficção, animação e documentário. Este Festival teve a duração de dois dias e exibiu 10 curtas-metragens produzidos por realizadores portugueses em suas terras e no estrangeiro. A quinta edição do Festival terá início no dia 28 de Maio (2015) em Nova Iorque e Cascais, seguido por Lisboa. O NYPSFF promove os melhores trabalhos de uma nova geração de realizadores portugueses, dando-lhes a oportunidade de exibir os seus filmes em diversos países, como Estados Unidos, Portugal, Brasil, Reino Unido, África do Sul, Canadá e Austrália”.

Tive o prazer de comparecer ao primeiro dia. Cinco curtas-metragens foram apresentados, precedidos por breves informações da diretora, organizadora e explanadora do Art Institute em Nova York, Ana Ventura Miranda e do ator Ivo Canelas. Ambos teceram posições sobre o projeto e também comentaram a esperançosa trajetória do curta-metragem em Portugal.

Um interessante curta, a focalizar portugueses que partiram, nessa diáspora que os fez, entre tantos outros pontos geográficos espalhados pelo mundo, fixarem-se igualmente nos Estados Unidos. São depoimentos singelos, basicamente desprovidos da saudade, mas que demonstram que sacrifícios enormes tornaram esses imigrantes adaptados, se assim puder ser entendido, à realidade na América do Norte.

Cinco curtas metragens foram exibidos na primeira noite: “Gigante”, Júlio Vanzeler e Luis da Matta Almeida (animação); “Bestas”, Rui Neto e Joana Nicolau; “Emma’s Fine”,  Miguel M. Matias; “Gu”, Pedro Marnoto Pereira; “Exit Road”, Yuri Alves, variando de 11′ a 15′. Filmes tematicamente concentrados, bem dirigidos nas diversidades compreensíveis de personalidades marcantes, com atores de alto nível, alguns atingindo a excepcionalidade. Mencionaria o desempenho do ator de “Exit Road”, a interpretar um drogado, suas idas e vindas, possibilidade de sair do abismo até o inevitável suicídio, assim como o da atriz única de “Emma’s Fine”, seu impasse diante da vida e a solidão que a massacra até um impasse que fica em suspenso.

Neste mundo conturbado em que vivemos, onde pululam crises por todo o planeta, compreende-se que temáticas sobre tragédia, suicídio,  desamor, solidão, droga e distintos tipos de delito são provocantes para diretores. Foi o que se pode constatar nessa primeira noite do Festival. Quatro dos cinco filmes apreenderam essas realidades que assolam a humanidade. Esse posicionamento não implica crítica ao que foi criteriosamente selecionado para a mostra. Trata-se de constatação, apenas. “O Gigante”, animação de grande impacto pela simbologia transmitida, contrasta com os enredos mencionados. Uma menina instalada no coração de um gigante a observar o mundo e de lá partindo para descobertas e realização de sonhos. O mínimo esboço de um complacente sorriso desse gigante “tranquilo” revela a proteção e o abrigo. O curta-metragem é sensível, lírico em seu despojamento e transmite mensagem profunda.

As rápidas passagens dos créditos impedem a leitura pormenorizada dos autores das trilhas sonoras. Transparece uma sensação alvissareira do que está a ser produzido em Portugal por compositores específicos nesse segmento fundamental.

Após a apresentação houve debate, do qual tomaram parte o ator Ivo Canelas e a diretora Ana Ventura Miranda. Temas de interesse foram levantados, inclusive a assimilação de expressões linguísticas de novelas brasileiras no cotidiano em Portugal. Expressei-me, a mencionar artigo datado de 1992 do excelente poeta açoriano Hector Silva em “O Telégrafo”, suplemento “Antília” (Horta, capital do Faial, uma das nove ilhas do arquipélago dos Açores), em que o vate e editor escrevia sobre o desvirtuamento que estava a acontecer na linguagem do povo açoriano, mercê das novelas. Como correspondente do jornal durante dois anos – a seguir minha tournée pelo arquipélago -, respondi ao artigo, a concordar plenamente com o poeta e acrescentando que recebiam eles os enlatados já “lacrados”, diferentemente da feitura das novelas no país de origem, sujeitas às opiniões dos numerosos seguidores do gênero, que possibilitam alterações dos enredos!!! Mencionei que a produção de novelas portuguesas evolui sensivelmente, mas que, hélas, só há mão única, e que essas produções não chegam ao Brasil, o que traria oxigenação e o convívio com um melhor trato da língua portuguesa, certamente.

Conversamos, o excelente ator Ivo Canelas e eu, sobre a qualidade dos atores portugueses. Disse-me, durante o agradável diálogo, que trabalhou nos bons filmes “Florbela”, como irmão da notável poetisa Florbela Espanca e “Estrada 47″ (estão integralmente no YouTube). Assisti ao filme e gostei muito da direção de Vicente Alves do Ó, do desenrolar da trama e das atuações de Dalila Carmo, Ivo Canelas e Albano Jerónimo. Recomendo-o vivamente.

Infelizmente tivemos público pequeno para mostra tão significativa. Louve-se a guarida acentuada da Unibes Cultural a projetos de áreas artísticas diversificadas.

Unibes Cultural, a non-profit organization located in São Paulo, sponsored the Portuguese Short Film Festival last 5 and 6 November, screening 10 short films directed by a young generation of Portuguese filmmakers. I’ve attended the opening night and this post addresses some of the films and actors that I found particularly compelling. I was captivated. After the presentation, I chatted with the excellent actor Ivo Canelas. He can be seen in two feature-length films: “Estrada 47” and “Florbela”, the latter about the life of the great Portuguese poet Florbela Espanca (directed by Vicente Alves do Ó and starring Dalila Carmo, Ivo Canelas and Albano Jerónimo). Both movies are available on YouTube and highly recommended for their quality.