Dualidade Perigosa
Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
Há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.
Cecília Meirelles
Os terríveis acontecimentos ocorridos em Paris na noite de 13 de Novembro aterrorizaram um país que poderia até acreditar que os atos terroristas contra o jornal satírico francês Charlie Hebdo, aos 7 de Janeiro deste ano, pudessem ser apenas consequência de charges ofensivas ao profeta Maomé. A ação contra o semanário estava longamente urdida e o lamentável episódio já deveria ser entendido pelos mentores da tragédia como um extraordinário meio de divulgação. E o foi. Houve comoção mundial e os milhões que acorreram às ruas testemunharam solidariedade com o povo francês. Contudo, os derradeiros passos do terror seguem uma estratégia nítida, calculada, pragmática, radical, a ter como desiderato a submissão e destruição da cultura ocidental. Deveras é o terrorismo islâmico uma ação basicamente voltada à França? É-o, na medida que o país abriga hoje vários milhões de muçulmanos e, com a imigração desenfreada que ocorre, logicamente terá essa quantidade aumentada; e é-o, se considerado for que há um número desconhecido de terroristas infiltrados em solo francês, nascidos em França, pertencentes à comunidade islâmica laboriosa e confundindo o cotidiano parisiense nos recentes casos. Inimigos ocultos provocando a catástrofe.
Tenho acompanhado diversos artigos publicados, sobretudo em França e na Inglaterra, e conversado com amigos nativos que vivem na Europa. Opiniões contrastam ao considerar o contingente oriundo da África do Norte e do Médio Oriente como pacífico. Foge das atrocidades que pululam em várias regiões, contudo não se refugiam em países muçulmanos, e há dezenas deles. Razões existem, e a primordial é a total ausência de democracia nesses países, todos sujeitos aos regimes ditatoriais. Um vídeo húngaro recente focaliza imigrantes das regiões assoladas por guerras e desajustes, fora de um comboio, todos homens da juventude madura, não aceitando garrafas de água para os passageiros, chutando-as ou jogando-as diretamente nos trilhos. Razão, continham no rótulo a Cruz Vermelha da organização humanitária. Preocupante presságio, pois demonstram a total intolerância com o símbolo do cristianismo, religião dominante na Hungria, país que os estava recebendo, ao menos de passagem. O precioso líquido não chegou às crianças, mulheres e idosos. É fato que o agigantar terrorista acentuou-se durante e após as ações desastrosas dos ex-presidentes Bush (pai e filho) e da presente e pusilânime gestão Obama. Recrudesce a tensão, acirra-se a intolerância de muitos jovens nascidos na Europa, mas muçulmanos, e de outros tantos que estão a chegar em ondas contínuas. A aceleração, sem possibilidade de estancamento a médio prazo, dessa inédita “invasão” e o recrutamento (lavagem cerebral) de milhares de crianças e jovens para atividades insanas, tanto in loco como em França e na Bélgica desnortearam o Ocidente. E o que dizer dos “estagiários” que se dirigem à Síria e ao Iraque para se juntarem aos fundamentalistas do EI. Tenho amigos diletos marroquinos e descendentes que vivem na Bélgica e se integraram muitíssimo bem ao país que os abrigou. Contudo, há os intolerantes, e a mais absoluta preocupação está a se instalar nas populações da Bélgica, da França e de outros países da Europa, como também dos Estados Unidos.
Voltando-se ao autoproclamado Grupo Estado Islâmico, está ele disperso e muitos são os aglomerados terroristas espalhados pelo norte da África e pelo Médio Oriente, o que torna bem mais difícil uma incursão terrestre. Teriam de ser muitas frentes de infantaria. A derrocada dos USA na Guerra do Vietnã (1955-1975) não foi também pelo fato de que os “inimigos” surgiam de todos os lados, inclusive cavando túneis? É só lembrarmos da grande base norte-americana de Da Nang e das incursões subterrâneas dos vietcongs, mormente à noite. Mas, no caso do EI deve haver um cérebro, um líder a difundir decisões, tanto nos extermínios de inimaginável barbárie, in loco, dos “prisioneiros” que professam outras crenças, como no doutrinamento de crianças e na “escravidão” das mulheres. Espalhar o terror faz parte dessa engrenagem que revive os períodos mais obscurantistas da história. O Boko Haram na Nigéria declarou lealdade ao EI, outros grupos que espalham o terror na Somália, no Iêmen e outras terras devem ter já professado “obediência”, o que induz a pensar nesse “cérebro” que comanda atos terroristas. Seria possível acreditar num líder com colegiado rigorosamente amestrado. Ele deve existir, tem nome. Ratificando, quantos já não são os militantes infiltrados nessa leva que “invade” a Europa, impulsionados por essas lideranças ocultas?
Em França, o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” tem sua origem no primeiro artigo da “Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen”, de 1789, ano da Revolução Francesa. Explicitado bem posteriormente na “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, de 1948, também em seu primeiro artigo. Nenhum país ocidental apreendeu de maneira mais ampla o tríptico do que a própria França, que o criou. Seria possível entender que esse extraordinário lema, orgulho do povo francês, esteja hoje, devido à abertura que é característica da França, sendo uma das causas do acúmulo de atentados. As três palavras sacralizadas jamais serão captadas em sua essência essencial por fanáticos que, nascidos em solo francês, dirigiram-se às tendências aniquiladoras. A lavagem cerebral existe desde a antiguidade e, para aqueles que a ela são submetidos, ignorar quaisquer princípios humanitários e de liberdade é “lei”.
A apreciação deste lado sul do Atlântico leva-me a considerar um fato irresponsável e, sobretudo, a revelar desprezo pleno pela cultura tradicional. Após os atentados de 13 de Novembro, o jornal satírico Charlie Hebdo tem publicado charges com dizeres atestando diferenças conceituais profundas, mas provocativas, pois nestes divulgam que, enquanto o EI tem armas, a França tem Champanhe e mulheres fáceis. Numa das secções do hebdomadário, “En Kiosque”, (18/11), há uma charge “Paris, capitale de la perversion. Faites la perversion, pas la guerre”. A charge apresenta um casal despido a sorrir e o homem a salientar o dedo médio em posição ofensiva. Não tem o semanário a procuração de notáveis franceses que forjaram a cultura do país através dos séculos, como Ronsard, Descartes, Molière, Corneille, Racine, La Fontaine, Voltaire, Couperin, Rameau, Berlioz, Delacroix, Victor Hugo, Balzac, Monet, Gaughin, Cézanne, Rodin, Matisse, Eiffel, Pasteur, Pierre Curie, Fauré, Debussy, Ravel, Verlaine, Mallarmé, Saint-Exupéry, Bernanos, Malraux, Jankélévitch e uma infinidade, friso, infinidade de grandes vultos, testemunhando que os valores essenciais franceses são outros, humanistas, artísticos e científicos e que colocam a França num patamar criativo rigorosamente singular. Sim, a mulher fácil, a perversão e a libertinagem existem em França e em todos os recantos do planeta; e o Champagne (em charge recente) é delicioso produto, mas produto. Demonstra o semanário leviandade a desprezar consequências fatais. Pseudo-humor, de mau gosto, inoportuno e reducionista. Não seriam esses os elementos fulcrais para a realização dos atos insanos terroristas, mas sem dúvida são provocativos. Estariam a evidenciar que o semanário teria perdido o rumo.
Infelizmente a França estará sujeita a futuros atos atrozes, hélas. As células cancerosas se expandem em metástase, pois no interior do país. Não há consenso quanto ao tratamento, mas ele tem de ser imediato e sem tréguas. A França sempre soube reagir, seu povo preza valores culturais, ora ameaçados. Esperemos que a presidente do Brasil, que há pouco mais de um ano, na abertura das sessões da ONU, propunha um “diálogo” com os terroristas do EI, tenha uma outra postura e se coloque à disposição, juntamente com importantes líderes de países do hemisfério norte que já se pronunciaram, para a ação conjunta, diplomática que seja. Esperemos…
The reflections of someone living on the other side of the Atlantic on the terrorist attacks last 13 November in Paris, something the press has been describing as a clash between religious extremism and free speech – a threat to the entire world, not only to France – and the deplorable provocations staged by the satirical newspaper Charlie Hebdo.