Navegando Posts publicados em abril, 2016

A longevidade do Intérprete, uma Dádiva

Com a verdade da minha vida
me posso condecorar ou me condenar;
sinal de que a vivo bem vivo.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Neste espaço, reiteradas vezes comentei estar sempre atento aos esportes, e não em poucas oportunidades entendi pertinentes e aplicáveis muitas das formulações propostas por técnicos das várias modalidades, pois, sob outra égide, próximas às práticas musicais técnico-interpretativas. Considere-se que o intérprete de instrumentos de música utiliza-se das mãos, que têm de estar preparadas para o mister. Essa associação esporte-música, nesse aspecto eminentemente técnico, não têm a menor correlação com a faixa etária. Sob aspecto outro, se o esporte tem como característica o aprimoramento técnico e tático, a atividade do músico intérprete, au delà do essencial estado técnico de excelência, tem como característica fulcral a transmissão da obra de arte configurada através dos séculos, e essa atribuição inalienável necessita de um desenvolvimento mental que, ao longo dos anos, sofre aprimoramento. Sem o nível técnico o desempenho do intérprete musical será pífio, mas sem o conhecimento profundo, também o será.

Reflexões afloraram após o grande nadador César Cielo, medalhista em Olimpíadas e campeonatos mundiais, detentor de recordes espantosos, não conseguir, aos 29 anos, índice para as Olimpíadas que serão realizadas no Rio de Janeiro em Agosto. Justamente na prova dos 50 metros livres em que foi, durante um bom período, o mais rápido do mundo. Todavia, Michael Phelps, o extraordinário nadador norte-americano, virá para as Olimpíadas do Rio em forma, aos 30. Não nos esqueçamos da magnífica nadadora Dara Torres, também dos Estados Unidos, que obteve 12 medalhas, sendo quatro de ouro, e que aos 40 anos participou de sua última Olimpíada. A ginástica olímpica assiste, a cada certame quadrienal, à aparição de fenômenos na tenra idade que se estiolam na competição seguinte. Futebolistas ultrapassam a barreira dos 30 já com a desconfiança de críticos e torcedores e raramente vão além dos 35 anos. Ricardo Oliveira (Santos), Marcos (Palmeiras), Rogério Ceni (São Paulo), Gianluigi Buffon (Juventus e seleção italiana) e, incrivelmente, Zé Roberto (Palmeiras) passaram essa marca, sendo que este último mantém qualidade aos 41 anos de idade, após jogar na minha desacreditada Portuguesa, na seleção brasileira e, sobretudo, no portentoso Bayern de Munique, entre outras agremiações! Poder-se-ia dizer que seria essa a faixa etária limite para um atleta de ponta, considerando-se as várias modalidades esportivas. “O tempo insubornável”, na pena do grande Guerra Junqueiro.

Vê-se que, ao chegar o momento de ter de parar a prática profissional, nem todo atleta aceita com amadurecimento a despedida, e tantos, por motivos outros, como vida desregrada, sequer estão preparados para o day after.  Diria que o encerramento de carreiras em tempo certo é irreversível. Quando advém, aqueles poucos anos “miraculosos” se esvaem e pouco resta a não ser lembranças e glórias cultuadas pelos aficionados que acariciarão egos feridos. O atleta profissional, na busca de novos horizontes, terá caminho que poderá ser árduo.

A premissa se faz necessária na medida em que a atividade do intérprete musical em sua rigorosa prática diária que mantém a destreza física, nesse amálgama apontado acima sobre preparo técnico-teórico, ultrapassa a barreira etária e permite ao músico não visualizar o fim, geralmente configurado na morte física. Não há limite de idade para o músico intérprete no que tange a seus dedos, a não ser problemas físicos que possam surgir durante a trajetória. Tantos foram os ótimos músicos que tiveram de interromper carreiras brilhantes por adversidades ou males surgidos. O grande pianista Mieczyslaw Horzowsky (1892-1993) apresentou recital de alto nível no Carnegie Hall em Nova York, aos 98 de idade!!! Atravessou o palco amparado, mas, ao iniciar a récita, deu-se a magia!!! Participo de corridas de rua desde 2008, e há figura emblemática, Tuplet Seabra Vasconcellos, que morreria aos 99 anos. Aos 97 participou de competição pertinente à idade, o mundial na Itália, obtendo o 3º lugar nos 5.000 metros e o 1º nos 10.000. Exceções!!! Contudo, na arte da interpretação pianística inúmeros grandes mestres ultrapassaram facilmente os 80 anos tocando em altíssimo nível.

Certo dia conversava com notável cirurgião que me dizia que em seu ofício também se utilizava das mãos. Concordei plenamente, mas observei que essa prática dava-se na sala de cirurgia e que nós, intérpretes, temos de praticar todos os dias, na solidão, a destreza dos dedos – sem contar todo o conjunto corporal que resulta nessa aplicação digital. É justamente nesse quesito que a nossa atividade se aproxima da prática esportiva, pois todo o aspecto cognitivo-musical amalgama-se a essa indispensável manutenção física.

Preparo-me para mais uma travessia no início de Maio. Serão quatro recitais em Portugal e entrevista na respeitada Antena 2 da RDP (dia 4). Inicialmente Cascais (Casa da Cultura), em evento promovido pelo Museu da Música Portuguesa e pela Câmara Municipal de Cascais (6). A seguir, Évora, a “Cidade Esotérica e Misteriosa”, título do livro de meu saudoso amigo Joaquim Palminha Silva. O concerto tem o patrocínio da Escola de Música Eborae Musica e do Centro Ward de Lisboa e será realizado no Convento Nossa Senhora dos Remédios (9). Teremos após concerto em Tomar, a cidade dos Templários, berço de Fernando Lopes-Graça. A récita se dará na Escola de Música Canto Firme (11). O último recital será apresentado na Almada, no Convento dos Capuchos, com patrocínio da Associação Lopes-Graça e da Câmara Municipal de Almada (14). Chega-se ao Convento atravessando a ponte 25 de Abril, na outra margem do magnífico Tejo para quem sai de Lisboa. Friso, as entidades privadas e as Escolas de Música envolvidas nas récitas que recebem subvenções do governo lutam com enormes dificuldades, mas batalham e realizam. Comovente!!!

O programa será inteiramente dedicado a Fernando Lopes-Graça (1906-1994), o maior nome da música portuguesa de concerto, clássica ou erudita do século XX. O que desperta interesse maior nessa tournée é a apresentação, em primeira audição em Portugal, da magnífica coletânea constituída pelos 12 Cantos Sefardins para canto e piano do notável compositor. Apresentamo-la em primeira audição mundial em São Paulo em Outubro último, num ciclo de três dias consagrados a Lopes-Graça e promovido pela UNIBES Cultural e pelo Consulado Geral de Portugal em São Paulo. A mezzo-soprano Rita Morão Tavares, pertencente ao Coro Gulbenkian, que cantou a obra em nossa cidade, será também a solista dos Cantos Sefardins. Completarei o programa com a extraordinária criação Canto de Amor e de Morte e o conjunto de 19 peças que constituem a joia rara representada pelas Viagens na Minha Terra, título homônimo do romance de Almeida Garrett. Para esse precioso caderno, o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso preparou para a apresentação em São Paulo, e que se repetirá em Portugal, um datashow de raro interesse, pois à medida que Lopes-Graça percorre aldeias e vilas, o ouvinte terá oportunidade de seguir a caminhada musical do compositor por essas localidades por ele tão amadas.

Em blogs bem anteriores, assinalei que, para mim, toda travessia tem de ter o cunho do inusitado. Quantas não foram as vezes que resenhei com afeto livros de viajantes intrépidos que buscam, nessas terras desconhecidas, a razão para tantos questionamentos, mesmo os de ordem interior? Sentir-me-ia desconfortável em atravessar o Atlântico ou outros solos tendo que me repetir ad aeternum. Se revisito uma obra em determinada geografia, faço-o a atender grande recuo do tempo, o que enseja uma “redescoberta”. Bato-me contra a repetição repertorial, luta inglória, pois rigorosamente pessoal. Lógico que sempre tive tributo a pagar, situação que considero benfazeja, pois a essência essencial é transmitida. Organizações e patrocinadores poderosos abominam sair da rotina e, se o fazem homeopaticamente, é apenas para passar a ideia, ao público habitual, de que também pensam no inusitado, desde o passado à contemporaneidade. Fato.

No pórtico dos 78 anos sinto que a atividade do intérprete musical é uma dádiva preciosa. São décadas que, somadas, correspondem a várias gerações de atletas profissionais a se estiolarem.

Os dois próximos blogs serão redigidos em Portugal. Mais curtos pelas circunstâncias, abordarão a caminhada musical, os personagens portugueses que integram meus afetos e os pormenores que encantam o viajante.

As 2016 Olympic Games to be held in Rio de Janeiro draw nearer, one hears of renowned athletes who have failed to achieve olympic qualification standards. This post reflects on the importance of knowing the right time to leave the stage. In my view, a pianist is privileged. Since daily practice routine and good health are maintained, he may live past 80 and still give exceptional high level performances.

The next two posts will be written in Portugal, to where I’m flying at the beginning of May with recitals scheduled in Cascais, Évora, Tomar and Almada.

 

 

 

Viver a Vida, Solidão, Vazio, Viagem…

Senhor, se o viajante perdido no deserto
tem uma casa habitada
mesmo que nos confins do mundo,
alegra-se.
Nenhuma distância o impede de estar alimentado,
e, se ele morrer, morre no amor…
Antoine de Saint-Exupéry
(Citadelle, cap CXXIV)

Reflexões de interesse transmitidas por François Servenière a partir dos dois últimos blogs fizeram-me considerar o tema relacionado à solidão, que pode ensejar a vontade da vida mais curta. Admirador confesso das realizações e livros do aventureiro francês Sylvain Tesson, Servenière considera, contudo, que o grave e prosaico acidente que sofreu em 2014, que o levou ao coma e à paralisação parcial dos movimentos da face direita, tenha recrudescido esse desejo de existência breve e fim abrupto.

Entendo que em todas as atividades há “normas” que influenciam a trajetória humana. A vida contemplativa tem suas regras; a atividade artística em cada área caracteriza-se por determinada maneira de atuação, de proceder, de vestir-se, de viver “livremente”; o mundo corporativo tem, inclusive, atitudes frente à necessidade de evidenciar status no cotidiano, e a posse de bens materiais determina parte essencial da aceitação entre os pares; figuras mediáticas, em todas as funções possíveis, agem a pensar diuturnamente no holofote, “aparência” da verdade; personagens mundanas e frívolas só gravitam na superficialidade; o acadêmico na universidade sofre pressão constante vinda majoritariamente de carreiristas, geralmente com estreiteza de pensamento; políticos, com raríssimas exceções, pensam em suas trajetórias pessoais. O aventureiro, seja alpinista, navegador, andarilho ou a utilizar não importa qual meio de locomoção, conhece os riscos diários que podem levar ao fim da existência. Uma outra concepção se instaura em sua mente, que se pode traduzir em solilóquio, no vasto espaço da solidão e na antevisão da morte.

Essa atração pelo isolamento voluntário, expressa por Tesson na entrevista a Carine Marret e que o faz mergulhar no mundo interior, não diverge do que pensa Henry de Montherlant (1895-1972): “O importante não é ser diferente dos outros, mas diferente de si mesmo”. Seria Montherland a escrever que “aquele que viveu intensamente em parte venceu a morte”, frase de sua narrativa Un voyageur solitaire est un diable. Frise-se que Montherlant se suicidaria em 1972.

Servenière observa:

“Não fiz nenhum comentário a respeito de seu artigo sobre Sylvain Tesson, pois não sabia o que dizer e você disse tudo. Ademais, o vídeo é tão esclarecedor quanto à trajetória de nosso aventureiro! A respeito do discurso tessoniano ‘viver a vida em plena velocidade desde que ela seja curta’, sinto a frase como uma forma de testamento daquele que escapou da morte por milagre… Sente-se Sylvain em estado de urgência, apesar de mostrar-se calmo e realizado após suas explorações pelo mundo e sua vida e seus escritos plenos de sucesso. O vídeo, ao qual assisti por duas vezes, é magnífico.

Estou a ler presentemente ‘S’abandonner à vivre’, de Tesson (vide blog de 06/06/2015). Gosto muito, apesar de não aderir ao posicionamento ‘última solução’ do autor. Explico-me: última folha pelo fato de que se trata de uma ‘alegria sine qua non e, após, o dilúvio’. Para Sylvain Tesson, ‘estar vivo’ significa ‘viver velozmente sua vida’, ‘aproveitar o mais rapidamente a vida e tudo que ela nos oferece’… ‘mesmo que tenhamos de morrer jovens’. Para mim, viver não é simplesmente fazê-lo com intensidade, mas viver todos os períodos para melhor compreendê-los e também saber-se partícipe do contexto da vida, prolongando-a para nossas crianças e criações.

Não ter filhos, por escolha, impossibilidade ou egoísmo, poderia representar alienação frente à vida, à maneira de interpretá-la. Seria como um pintor falar de pintura sem nunca ter pego um pincel. Ter filhos, sem entrar no juízo de valor, nos conduz a um outro mundo, desde a intenção de tê-los.

Não sei se Sylvain Tesson tem ou não filhos. Sua vida é bela e seus livros e suas aventuras são incríveis, mas sente-se algo incompleto, talvez  correndo sem cessar atrás de espectro invisível. Não obstante, como podemos julgar que existe um homem completo? Complexa questão a que nos propomos constantemente. Não temos nós todos falhas, equívocos, desequilíbrios? Fizemos escolhas, especializamo-nos nos domínios por nós eleitos, o que nos limita o conhecimento de domínios estranhos… É isso. A completude da vida se faz pela assembleia dos humanos e todas as particularidades que formam o conjunto de um só corpus de experiências e de conhecimentos. Impossível conhecer tudo, verdadeira pretensão do homem!!!

Sobre o seu artigo no blog, diria que é necessário ver a literatura de Sylvain Tesson  como a de um antropólogo, cuja curiosidade sem trégua jamais será resolvida. Os viajantes são assim. Há os viajantes de salão, que surfam sobre seus sonhos e criam mundos extraordinários. Existem outros que passam em revista a Terra para preencher seus cadernos substanciosos, observando o planeta real e criando realidades mais belas do que o próprio real, pois apenas eles saberiam colocar palavras talentosas sobre o que observam, ressentem e entendem. Sylvain Tesson é um desses poetas esclarecidos. Fascinava-me a dicotomia entre meu amigo eslovaco Josef Baàn e meu posicionamento intelectual. Ele buscava na etnomusicologia as razões de ser de sua música, pois buscava, para a inspiração musical, conhecer cientificamente as raízes da música junto aos povos primitivos. De minha parte, compunha a partir de meu espírito, com ciência e memória, talvez, mas, antes de quaisquer outras razões, pela introspecção profunda. Inerente, adquirida?

Eu amo viajar. Não saberia dizer se amo a atração da viagem mais do que a própria viagem. Amo ser viajante, mais do que encontrar um desiderato para a viagem, uma destinação, seja intelectual ou física. Sou um viajante mental, pois meu espírito viaja a cada dia em torno da Terra. Todavia, creia-me, não realizei nada comparável a Sylvain Tesson. Lê-lo permite-nos viajar por procuração, mesmo que a situação seja insuficiente. Você bem sabe que não é fácil para um músico profissional viajar, sobretudo quando o piano é o instrumento. Flautista e violonista têm maiores possibilidades”. (tradução: JEM).

Debate sem limites. A mente humana sempre a viajar para locais palpáveis ou para o de profundis, sempre insondável.

In this post I transcribe message received from the French composer François Servenière, with his comments on Tesson’s worldview, as expressed in the book “On a roulé sur la Terre”.

 

 

 


Sylvain Tesson e Alexandre Poussin em aventura inédita

Ainsi nous allons mourir,
et nous n’aurons pas tué le vent.
Henry de Montherlant

Desde 2011 tenho resenhado livros do geógrafo, aventureiro e escritor Sylvain Tesson (1972- ). Em “On a roulé sur la Terre” (Paris: Robert Laffont, 1996), o autor realiza a volta ao mundo de bicicleta juntamente com seu amigo, aventureiro e escritor igualmente, André Poussin (1970- ). Bem posteriormente empreenderiam uma segunda grande viagem, “La Marche au Ciel -  5.000 km à pied à travers l’Himalaia” (vide blog: 25/02/12).

“On a roulé sur la Terre” é o primeiro livro dos dois autores, pois posteriormente realizariam viagens separadamente, exceção àquela na cadeia do Himalaia. Após o casamento com Sonia, Poussin empreenderia a travessia da África com a esposa e outras mais viagens.

Impressiona o destemor dos então jovens e intrépidos aventureiros. Companheiros de escaladas de monumentos como catedrais, prédios públicos, paredões e montanhas, os amigos, com pouco mais de 20 anos de idade, resolveram percorrer o mundo pedalando.

No mapa que apresentam, a título de orientação para o leitor, tem-se o périplo incrível dos dois corajosos viajantes. Só os oceanos determinariam as intermediações terrestres. Ao todo foram 364 dias e 23.962 km rodados sobre duas rodas, atravessando 31 países!!!

Para quem já percorreu com grande prazer onze livros posteriores de Sylvain Tesson, fica nítido o embrião de percursos outros de bicicleta, a cavalo ou… a pé. Em “On a roulé sur la Terre” há puerilidade em algumas situações, diria, familiares. A mãe de Tesson encontrar-se-ia com a dupla em Lhasa, no Tibet, pois, médica, realizava atividade concernente à sua profissão. Em Teerã, novo encontro, desta vez providencial, pois a progenitora determinaria o diagnóstico de uma hepatite E, que debilitara totalmente Alexandre Poussin nos últimos dias de pedaladas até a capital iraniana. Convidados para jantar em casa do governador de Kerman, este se recusa a apertar a mão da médica – “minha religião não permite” – e Alexandre comenta: “Apesar de ter feito seus estudos em Oxford, gelamos com essa atitude. Ele possui o olhar fixo e iluminado que percebemos num dependente de ópio ou naqueles devotados à morte por uma ideologia da negação”. Durante todo o longo caminho pelo planeta, há por vezes o bálsamo que estimula, visitas de outros parentes e amigos de um ou de outro, como o caso da amiga Sonia, “a prometida” de Alexandre, segundo Sylvain, que com eles se encontraria em Mendoza e, mais tarde, seria a companheira de Poussin em aventuras extraordinárias do marido. De Mendoza, Sylvain e Alexandre teriam a companhia até Valparaizo, no Chile, dos amigos Eric e Natasha e da “prometida”. Despedem-se nessa cidade e os dois partem de avião para a ilha da Páscoa. Sylvain comenta: “Voltamos a comer com os dedos e a enfiá-los no nariz e a tomar banho se oportunidade houver”. Há também a recepção por parte de conhecidos previamente anotados e o maravilhamento do anônimo, ser cordial que os receberia em quaisquer circunstâncias, seja num humilde abrigo ou então em belas moradas.

No espaço que reservo aos blogs dificilmente poderia comentar sequer parte do longo percurso. Digna de consideração a narração alternada de Sylvain e Alexandre, o que torna a leitura muito agradável, ao mesmo tempo em que os textos descortinam situações humanas ou de natureza geográfica de muito interesse. Diria que Alexandre Poussin mostra-se mais lírico e as descrições daquilo que observa, por vezes, fariam bem perceber leituras prévias das aventuras de Saint-Exupéry, como “Terre des Hommes”. Pormenoriza a transformação contínua da natureza planetária, sem contudo desprezar o semelhante. Tece reflexões, como no caso da região himalaia. “Durante todo o dia somos confrontados com o esforço depreendido nessa região: é a valsa das vestimentas, valsa-hesitação, valsa-insatisfação”, referindo-se à constante mutação climática e à “altitude, que resolve as hesitações da chuva transformando-a em neve”. Quando no Irã, sob as tendas em noite brumosa, escreve: “Seria necessário captar o silêncio em foto, o silêncio é tão extremo”. Sylvain, nos seus 22 anos, mostra-se atento ao que vê e sente, mas já dá a perceber certo pragmatismo, tão presente nos seus magníficos relatos futuros.

Os dois não deixam de criticar com agudeza certas situações que encontram ao atravessar 31 países. Não se trata de fortuitamente conhecerem os locais. No curso das pedaladas, o olhar atento vai fixando o que causa impacto. Quando param, têm a possibilidade do contato humano. Não raras vezes são convidados para dormir no interior das moradias espalhadas pelo mundo, o que lhes dá prazer, mormente porque, na maioria das noites, são forçados a dormir em suas tendas.

Seguir a narrativa é conhecer hábitos e costumes de povos que nos são distantes e a entender determinadas precauções que devem ser tomadas em travessia desse porte. Do deserto do Saara ocidental guardam uma premissa essencial quanto aos poços: “se perdermos um só, tudo estará comprometido”. De Buenos Aires, Alexandre deduz: “pequena Europa concentrada, mescla de Barcelona e Paris, com pinceladas de Berlin revisitada por Milão e Nápoles”. Sylvain comenta o início das pedaladas na ascensão dos Andes: “O muro dos Andes se apresenta, como se os pampas morressem ao se confrontar com a cordilheira”. Sobre as longas avenidas de Santiago: “as avenidas são muito longas, parecem o mapa do Chile”. Comentários outros florescem a toda página e nos apresentam Bangkok e a sujeira que impera; a China como uma grande “escarradeira”, pois todos eliminam esses dejetos sem nenhum pudor, em todos os lugares públicos ou privados; criticam a imundície dos hospitais públicos do grande país asiático: ” A última coisa a fazer é ficar doente na China popular”. É que a dupla não passou pelo Brasil, pois de Dakar foram diretos a Buenos Aires. Senão… O sonho de chegar a Lhasa se realiza e sentem o impacto da história milenar do local sagrado, infelizmente anexado violentamente pelos chineses.

Uma cena hilariante valeria transmitir ao leitor. Na descida de Lhasa em direção à Índia deixam as desgastadas bicicletas deslizarem com rapidez. Em trecho sem habitações próximas, percebem que um grande cão desce velozmente também. Pelo retrovisor notam ser um dog tibetano, cão de guarda enorme e pouco sociável. A situação leva-os à queda e imediatamente fazem da bicicleta escudo contra a iminente investida. Esse animal, quando irado, eriça os pelos da enorme cabeça. No instante do ataque, os dois soltaram um grande grito, única defesa possível. O dog abaixa a juba, vira-se e retoma o caminho de volta. Tem graça o relato. Cito este fato pois, na década de 1970, situação semelhante vivi quando realizava pesquisa sobre arte sacra popular no Vale do Paraíba. Vendo uma casa de caboclo com cerca em volta e frágil portinhola, bati palmas e entrei pelo terreno. Repentinamente, um avantajado pastor alemão, provavelmente mestiço, saiu da morada bem simples, veloz e a latir. Apavorei-me inicialmente, pois impossível retornar correndo. Aguardei o pior. Aproximou-se a uma distância de cerca de dois metros, parou, rangeu os dentes, adiantou as patas dianteiras para o salto e preparava-se para me morder com certeza quando abri os braços e dei um berro a plenos pulmões. O cão abaixou o rabo e retornou à casa correndo e eu, também a correr rumo ao portão. Meu saudoso amigo Carlindo Pavan, que permanecera no carro, gargalhava.

Retornando ao livro “On a roulé sur la Terre”, mais de uma vez ficam detidos por longas horas nas inúmeras fronteiras atravessadas. Quase sempre as autoridades mostram a prerrogativa que as torna inquestionáveis. Seria basicamente improvável numa viagem por países por vezes inóspitos, a ausência da agressão e em duas oportunidades são agredidos por militares em países asiáticos. Aprendem com o tempo a lidar com as situações complexas. O fato de os dois terem habilidades musicais e de representação cênica serviu para atenuar momentos críticos. Quando a realidade mostrava-se favorável, tocavam flauta e dançavam diante das crianças e adultos espalhados pelo mundo.

Se as narrativas da natureza são, em determinadas circunstâncias, bem líricas, mormente se os dois sentem-se descontraídos e felizes nessas pedaladas, não raramente há relatos mais cáusticos ou até sombrios, sobretudo quando um deles adoece.

À medida que se aproximam do lar, ainda na Crimeia, o discurso se torna mais esperançoso, apesar de uma das travessias de fronteira ter sido feita clandestinamente. Armênia, Crimeia, Ucrânia vão sendo ultrapassadas, Romênia até Cluj-Napoca (dei recital nessa bela cidade) e de lá à Hungria, Áustria, Alemanha, Suíça e França.

O último relato é de Alexandre. Vale a pena a leitura “Nós deliramos. Trezentos e sessenta graus, revolução em nossos corações, voltamo-nos a nós mesmos”. Menciona as avenidas parisienses, que assistiram às últimas pedaladas: “Hoche, Carnot, Foch, Hugo rendem-nos as derradeiras homenagens; tudo passa, tudo foge, elas estão lá, em frente, tudo para, tudo apaga, uma senhora de vermelho agita um lenço amarelo, minhas pernas fraquejam, titubeio, voz embargada, cego pelo sol da emoção: Mamãe! Ela não está mais lá! Ela está nos meus braços! Levanto-a, tudo apaga. Parecia estar a caminhar como um autômato através da praça, no meio dos carros…”.

My appreciation of the book “On a roulé sur la Terre”, a four-hand work in which Sylvain Tesson and André Poussin, both then in their early twenties, give an account of a year spent cycling around the planet, crossing 31 countries and covering 23.962 km. First book of the two friends (they would write one more together), it describes countries they visited, people they met, varied geography and living conditions, funny or scaring encounters in exotic far-away lands. An enthralling book and an epic adventure one devours with pleasure.