Sylvain Tesson e Alexandre Poussin em aventura inédita
Ainsi nous allons mourir,
et nous n’aurons pas tué le vent.
Henry de Montherlant
Desde 2011 tenho resenhado livros do geógrafo, aventureiro e escritor Sylvain Tesson (1972- ). Em “On a roulé sur la Terre” (Paris: Robert Laffont, 1996), o autor realiza a volta ao mundo de bicicleta juntamente com seu amigo, aventureiro e escritor igualmente, André Poussin (1970- ). Bem posteriormente empreenderiam uma segunda grande viagem, “La Marche au Ciel - 5.000 km à pied à travers l’Himalaia” (vide blog: 25/02/12).
“On a roulé sur la Terre” é o primeiro livro dos dois autores, pois posteriormente realizariam viagens separadamente, exceção àquela na cadeia do Himalaia. Após o casamento com Sonia, Poussin empreenderia a travessia da África com a esposa e outras mais viagens.
Impressiona o destemor dos então jovens e intrépidos aventureiros. Companheiros de escaladas de monumentos como catedrais, prédios públicos, paredões e montanhas, os amigos, com pouco mais de 20 anos de idade, resolveram percorrer o mundo pedalando.
No mapa que apresentam, a título de orientação para o leitor, tem-se o périplo incrível dos dois corajosos viajantes. Só os oceanos determinariam as intermediações terrestres. Ao todo foram 364 dias e 23.962 km rodados sobre duas rodas, atravessando 31 países!!!
Para quem já percorreu com grande prazer onze livros posteriores de Sylvain Tesson, fica nítido o embrião de percursos outros de bicicleta, a cavalo ou… a pé. Em “On a roulé sur la Terre” há puerilidade em algumas situações, diria, familiares. A mãe de Tesson encontrar-se-ia com a dupla em Lhasa, no Tibet, pois, médica, realizava atividade concernente à sua profissão. Em Teerã, novo encontro, desta vez providencial, pois a progenitora determinaria o diagnóstico de uma hepatite E, que debilitara totalmente Alexandre Poussin nos últimos dias de pedaladas até a capital iraniana. Convidados para jantar em casa do governador de Kerman, este se recusa a apertar a mão da médica – “minha religião não permite” – e Alexandre comenta: “Apesar de ter feito seus estudos em Oxford, gelamos com essa atitude. Ele possui o olhar fixo e iluminado que percebemos num dependente de ópio ou naqueles devotados à morte por uma ideologia da negação”. Durante todo o longo caminho pelo planeta, há por vezes o bálsamo que estimula, visitas de outros parentes e amigos de um ou de outro, como o caso da amiga Sonia, “a prometida” de Alexandre, segundo Sylvain, que com eles se encontraria em Mendoza e, mais tarde, seria a companheira de Poussin em aventuras extraordinárias do marido. De Mendoza, Sylvain e Alexandre teriam a companhia até Valparaizo, no Chile, dos amigos Eric e Natasha e da “prometida”. Despedem-se nessa cidade e os dois partem de avião para a ilha da Páscoa. Sylvain comenta: “Voltamos a comer com os dedos e a enfiá-los no nariz e a tomar banho se oportunidade houver”. Há também a recepção por parte de conhecidos previamente anotados e o maravilhamento do anônimo, ser cordial que os receberia em quaisquer circunstâncias, seja num humilde abrigo ou então em belas moradas.
No espaço que reservo aos blogs dificilmente poderia comentar sequer parte do longo percurso. Digna de consideração a narração alternada de Sylvain e Alexandre, o que torna a leitura muito agradável, ao mesmo tempo em que os textos descortinam situações humanas ou de natureza geográfica de muito interesse. Diria que Alexandre Poussin mostra-se mais lírico e as descrições daquilo que observa, por vezes, fariam bem perceber leituras prévias das aventuras de Saint-Exupéry, como “Terre des Hommes”. Pormenoriza a transformação contínua da natureza planetária, sem contudo desprezar o semelhante. Tece reflexões, como no caso da região himalaia. “Durante todo o dia somos confrontados com o esforço depreendido nessa região: é a valsa das vestimentas, valsa-hesitação, valsa-insatisfação”, referindo-se à constante mutação climática e à “altitude, que resolve as hesitações da chuva transformando-a em neve”. Quando no Irã, sob as tendas em noite brumosa, escreve: “Seria necessário captar o silêncio em foto, o silêncio é tão extremo”. Sylvain, nos seus 22 anos, mostra-se atento ao que vê e sente, mas já dá a perceber certo pragmatismo, tão presente nos seus magníficos relatos futuros.
Os dois não deixam de criticar com agudeza certas situações que encontram ao atravessar 31 países. Não se trata de fortuitamente conhecerem os locais. No curso das pedaladas, o olhar atento vai fixando o que causa impacto. Quando param, têm a possibilidade do contato humano. Não raras vezes são convidados para dormir no interior das moradias espalhadas pelo mundo, o que lhes dá prazer, mormente porque, na maioria das noites, são forçados a dormir em suas tendas.
Seguir a narrativa é conhecer hábitos e costumes de povos que nos são distantes e a entender determinadas precauções que devem ser tomadas em travessia desse porte. Do deserto do Saara ocidental guardam uma premissa essencial quanto aos poços: “se perdermos um só, tudo estará comprometido”. De Buenos Aires, Alexandre deduz: “pequena Europa concentrada, mescla de Barcelona e Paris, com pinceladas de Berlin revisitada por Milão e Nápoles”. Sylvain comenta o início das pedaladas na ascensão dos Andes: “O muro dos Andes se apresenta, como se os pampas morressem ao se confrontar com a cordilheira”. Sobre as longas avenidas de Santiago: “as avenidas são muito longas, parecem o mapa do Chile”. Comentários outros florescem a toda página e nos apresentam Bangkok e a sujeira que impera; a China como uma grande “escarradeira”, pois todos eliminam esses dejetos sem nenhum pudor, em todos os lugares públicos ou privados; criticam a imundície dos hospitais públicos do grande país asiático: ” A última coisa a fazer é ficar doente na China popular”. É que a dupla não passou pelo Brasil, pois de Dakar foram diretos a Buenos Aires. Senão… O sonho de chegar a Lhasa se realiza e sentem o impacto da história milenar do local sagrado, infelizmente anexado violentamente pelos chineses.
Uma cena hilariante valeria transmitir ao leitor. Na descida de Lhasa em direção à Índia deixam as desgastadas bicicletas deslizarem com rapidez. Em trecho sem habitações próximas, percebem que um grande cão desce velozmente também. Pelo retrovisor notam ser um dog tibetano, cão de guarda enorme e pouco sociável. A situação leva-os à queda e imediatamente fazem da bicicleta escudo contra a iminente investida. Esse animal, quando irado, eriça os pelos da enorme cabeça. No instante do ataque, os dois soltaram um grande grito, única defesa possível. O dog abaixa a juba, vira-se e retoma o caminho de volta. Tem graça o relato. Cito este fato pois, na década de 1970, situação semelhante vivi quando realizava pesquisa sobre arte sacra popular no Vale do Paraíba. Vendo uma casa de caboclo com cerca em volta e frágil portinhola, bati palmas e entrei pelo terreno. Repentinamente, um avantajado pastor alemão, provavelmente mestiço, saiu da morada bem simples, veloz e a latir. Apavorei-me inicialmente, pois impossível retornar correndo. Aguardei o pior. Aproximou-se a uma distância de cerca de dois metros, parou, rangeu os dentes, adiantou as patas dianteiras para o salto e preparava-se para me morder com certeza quando abri os braços e dei um berro a plenos pulmões. O cão abaixou o rabo e retornou à casa correndo e eu, também a correr rumo ao portão. Meu saudoso amigo Carlindo Pavan, que permanecera no carro, gargalhava.
Retornando ao livro “On a roulé sur la Terre”, mais de uma vez ficam detidos por longas horas nas inúmeras fronteiras atravessadas. Quase sempre as autoridades mostram a prerrogativa que as torna inquestionáveis. Seria basicamente improvável numa viagem por países por vezes inóspitos, a ausência da agressão e em duas oportunidades são agredidos por militares em países asiáticos. Aprendem com o tempo a lidar com as situações complexas. O fato de os dois terem habilidades musicais e de representação cênica serviu para atenuar momentos críticos. Quando a realidade mostrava-se favorável, tocavam flauta e dançavam diante das crianças e adultos espalhados pelo mundo.
Se as narrativas da natureza são, em determinadas circunstâncias, bem líricas, mormente se os dois sentem-se descontraídos e felizes nessas pedaladas, não raramente há relatos mais cáusticos ou até sombrios, sobretudo quando um deles adoece.
À medida que se aproximam do lar, ainda na Crimeia, o discurso se torna mais esperançoso, apesar de uma das travessias de fronteira ter sido feita clandestinamente. Armênia, Crimeia, Ucrânia vão sendo ultrapassadas, Romênia até Cluj-Napoca (dei recital nessa bela cidade) e de lá à Hungria, Áustria, Alemanha, Suíça e França.
O último relato é de Alexandre. Vale a pena a leitura “Nós deliramos. Trezentos e sessenta graus, revolução em nossos corações, voltamo-nos a nós mesmos”. Menciona as avenidas parisienses, que assistiram às últimas pedaladas: “Hoche, Carnot, Foch, Hugo rendem-nos as derradeiras homenagens; tudo passa, tudo foge, elas estão lá, em frente, tudo para, tudo apaga, uma senhora de vermelho agita um lenço amarelo, minhas pernas fraquejam, titubeio, voz embargada, cego pelo sol da emoção: Mamãe! Ela não está mais lá! Ela está nos meus braços! Levanto-a, tudo apaga. Parecia estar a caminhar como um autômato através da praça, no meio dos carros…”.
My appreciation of the book “On a roulé sur la Terre”, a four-hand work in which Sylvain Tesson and André Poussin, both then in their early twenties, give an account of a year spent cycling around the planet, crossing 31 countries and covering 23.962 km. First book of the two friends (they would write one more together), it describes countries they visited, people they met, varied geography and living conditions, funny or scaring encounters in exotic far-away lands. An enthralling book and an epic adventure one devours with pleasure.
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