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Europam, partimque Asiae, Libyaeque per urbes
Saeviit: in Latium vero per tristia bella
Gallorum irrupit: nomenque a gente recepit.
Nec non et quae cura: et opis quid comperit usus,
Magnaque in angustis hominum sollertia rebus;
Et monstrata Deum auxilia, et data munera coeli…
Girólamo Fracastoro
(“Syphilis sive morbus Gallicus”, 1530)

A doença subjugou a Europa, espalhou-se pelas cidades da Líbia
e irrompeu no Lácio pelas terríveis guerras gaulesas,
recebendo por isso o mesmo nome desse povo. Sim, e agora?
Qual o tratamento, como combater a doença
e as angustiosas decepções dos homens;
como nos socorrermos dos deuses e dos favores dos céus? (Tradução livre)

O post anterior suscitou inúmeras mensagens. Geralmente curtas, todas, sem exceção, enfatizaram a temática escolhida pelo ilustre médico e escritor Heitor Rosa, como questionaram o “paradeiro” da edição, não encontrável em livrarias. Soube que a Livraria Cultura, via internet, é um caminho. Como estarei em Goiânia no fim deste mês para curso e recital na Universidade Federal de Goiás, encontrar-me-ei com Heitor Rosa e poderei transmitir, àqueles que me enviaram mensagens, esclarecimentos sobre “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro” e “O Enigma da 5ª Sinfonia” (vide blog de 30/07/2016).

Transcrevo inicialmente a mensagem de Heitor Rosa. Foi-me importante, pois receber a opinião do autor é sempre estimulante, seja ela boa ou má. Neste caso leva ao aperfeiçoamento; naquele, ao estímulo para prosseguir.

“Vi, fascinado e imensamente alegre, seu generoso comentário sobre o Cirurgião-Barbeiro. Não adianta esconder o ego inflado provocado por uma pessoa tão excepcional e importante como você. Parece que todo o sacrifício de escrever e publicar desaparece quando me vejo como motivo de tão distinta honra no seu blog, assim como uma análise comovente. Obrigado mil vezes. Agora, vou confessar-lhe um segredo sobre um momento muito importante da história, para mim, que foi o desfecho de Helena. Como você leu, ela se feriu no pé, e a consequência foi a causa de sua doença. A descrição de seu sofrimento e posição no leito correspondem fielmente ao tétano (arqueamento do corpo, espasmo muscular etc). Pesquisei longamente como a doença era interpretada na época…(coisa do demônio). Sofri muito em castigar minha heroína e dar-lhe tal destino. A cena toda me tomou muito tempo, vários dias, pois precisava de um cenário dramático. Só depois de ouvir, altas horas da noite, o Requiem de Fauré consegui enxergar a cena. Não me foi fácil…mas quando escrevemos não somos donos da história ou dos diálogos. Você deve saber disso melhor do que eu…os mistérios da composição ou da interpretação. Obrigado mil vezes por sua cumplicidade na minha obra. Não sei bem como agradecer. Seu, fraternalmente, Heitor”.

Como o faz com absoluta assiduidade, o que me honra muito, o notável pensador e compositor François  Servenière me enviou informações preciosas sobre a atividade do cirurgião-barbeiro, reportando-se igualmente à prática farmacêutica ontem e hoje e à função precípua de um especialista da área em período relativamente recente, a não ultrapassar um século, assim como às transformações aceleradas por que passa a sociedade como um todo.

A mensagem de François Servenière testemunha a qualidade temática escolhida por Heitor Rosa, o arguto conhecimento do médico-escritor goiano no que concerne à prática e ao tratamento, mormente no período medieval, assim como o desenrolar da trama do romance baseada em tantos fatos reais. É-me sempre prazeroso divulgar as posições de Servenière relativas ao post da semana. Músico e pensador de alto nível, suas mensagens enriquecem não apenas o blog, mas trazem uma diferente luz aos temas abordados. Escreve:

“Li com atenção seu artigo sobre o livro de Heitor Rosa. Evocou-me numerosas reflexões. Adoro esse universo literário que reporta aos períodos ancestrais da medicina de campo, através dos cirurgiões-barbeiros, associação que se nos afigura hoje iconoclasta e quase sacrílega pelos que mantêm a arte médica.

Primeiramente, não me lembro de ter ouvido falar da sífilis como o Mal Francês e que o autor do terrível nome que se propagou era o célebre Hieronymus Fracastorius… Mal Francês ou sífilis, títulos de glória ou triste reputação no país do Marquês de Sade!!! Você me lembrou em seu blog. A cultura francesa é aquela do amor cortesão, mas o francês tem a reputação de sedutor vil e de marido  volúvel. Reputação confirmada pelas aldrabices de nossos políticos, a cem léguas do puritanismo dos peregrinos, os pilgrim fathers. Não obstante, italianos, espanhóis e portugueses não têm a invejar a propensão latina na arte da sedução.

Segunda lembrança evocada após seu artigo relaciona-se à música, que compus em 1993-1994 para o programa da France Télévision, ‘Au coeur des toiles’ (http://www.esolem-production.com/acd2list.html). Na lista de pinturas consagradas que deveriam ser ilustradas musicalmente figurava uma obra prima, ‘O tira-dentes’, de Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), pintura de 1754. Fui buscar minhas leituras nesse universo dos cirurgiões-barbeiros, ascendentes dos dentistas-cirurgiões (enfermeiros, cuidadores…) que, em suas épocas, eram socialmente respeitados, pois manuseavam o bisturi e a navalha com rara habilidade, sabiam igualmente ‘impor as mãos’ e, sobretudo, eram psicólogos natos e conhecedores dos enigmas da alma humana. Adeptos bem anteriores dos princípios do Método Coué”. Servenière refere-se ao  Método decorrente dos trabalhos do psicólogo e farmacêutico francês Émile Coué de la Châtaigneraie – 1857-1926. O método está fundamentado na sugestão e auto-hipnose. Prossegue Servenière: “Apreendi um detalhe instigante das práticas contidas no Método e que nós quisemos reproduzir musicalmente no audiovisual citado anteriormente. Na verdade, quando o barbeiro apertava o dente que deveria ser extraído, esse agora prático tira-dentes ordenava aos seus músicos, sempre presentes nesses lugares, que tocassem mais forte até o clímax, momento em que decidia extrair de um só golpe seco o dente condenado. Na verdade, esse aumento de volume sonoro prestava-se a duas coisas essenciais. Primeiramente, permitia ao ‘cirurgião’ desviar a atenção do paciente, pois ele operava em público sobre um estrado, no meio da praça do mercado. O paciente não mais focalizava suas dores e o pós-operatório, tampouco o stress de sua exposição pública sujeita à gozação nessa cena de ‘cinema’, pois pensava em outra coisa, descontraía-se e seu stress caía. Ao mesmo tempo, a música permitia ao auditório saber que o evento principal estava por acontecer. A música desempenhava a função de ilusão e de ilustração, como nas sessões de magia, com uma dramaturgia indo em escala ascendente até o auge.

Outra reflexão. Mais avanço em seu texto, mais ele evoca reminiscências que remontam à tradição familiar. Meu avô criava sanguessugas para fins medicinais, pois elas eram atração em sua velha farmácia (anexo foto). Meu pai e meu avô foram herboristas renomados. Essa tradição perdeu-se pouco a pouco, mercê do surgimento dos laboratórios farmacêuticos multinacionais que iriam doravante buscar muitos de seus princípios ativos na imensa floresta amazônica de seu Brasil. A tradição europeia do medicamento e do herborista se esvai gradativamente no Ocidente, apesar de ainda ser ensinada. Todavia, a caixinha de comprimidos amputou seriamente o saber do apotecário, que perderia por sua vez sua curiosidade campestre ancestral!!! O jovem farmacêutico não mais faz longas vigílias, muito menos ‘colheitas’ nas zonas rurais. Milita pelas 35 horas e se satisfaz com a situação salarial, como examinador de receitas médicas e vendedor de caixas de remédios. Menciono esses fatos, pois há membros de minha família que mantêm profissões ligadas ao tema que desenvolvemos e, para exemplificar: irmã, tio, tias, primos… Com a música e sua vasta área, temos duas particularidades importantes de nossa cultura familiar, que remonta a mais de um século!!! Diria que a propensão vital é o contato preservado com a natureza! A antítese niilista é a ignorância e a viagem em direção ao vazio do pensamento. Os limites do homem são apenas internos, psicológicos, como nós dois sabemos.

Adorei a frase latina primum non nocere (‘antes de qualquer coisa, o médico não será nocivo’), atribuída a Girolamo Fracastoro. Há alguns anos li o extraordinário livro de um escritor inglês sobre a peste que grassou no século XIV e que ceifou 1/3 da população europeia, que era constituída por cerca de 30 milhões de indivíduos.

Obrigado pelo post soberbamente interessante em torno do livro de seu amigo Heitor Rosa. Fez-me ativar lembranças que não se apagam”. (tradução: JEM).

Last week’s post, about Heitor Rosa’s novel “Memories of a Barber-Surgeon” got much feedback. I publish two of the messages received. The first —a great honor— from the author himself, who sends his thanks for the post and takes the opportunity to clarify us on the destiny of one of the characters of the book. The second, by the always thought-provoking French composer François Servenière, who talks about the memories the reading arouse in him, born in a family of pharmacists, and on how the tradition of herbalists has been lost in the era of great pharmaceutical labs.