As distintas fases criativas
O sucesso final do trabalho criador da idade madura
depende da resignação construtiva face às imperfeições humanas
e às insuficiências de seu próprio trabalho.
É essa resignação construtiva que imprime doravante
a serenidade na vida e na obra.
Elliot Jaques
Os posts sobre o jovem compositor António Fragoso, que faleceu aos 21 anos vítima da gripe espanhola, possivelmente a maior pandemia da história, antagonizou opiniões. Juventude ou maturidade? Quais as fases da existência mais propícias à criatividade? Recebi inúmeras mensagens observando o fato e algumas sugerindo abordar o polêmico tema. Um dos e-mails, do professor titular da USP Gildo Magalhães, resume as muitas opiniões e indagações: “É mesmo curiosa a precocidade. Num outro polo, vamos encontrar aqueles que só na maturidade tardia terão suas melhores obras, como o escritor Pedro Nava, que desabrocha depois dos 70 anos”. Aguçando-me ainda mais, meu amigo Marcelo – encontro-o sempre na feira-livre de sábado – insistiu para que apresentasse em blog exemplos e o porquê das várias fases da vida representarem características tão diferenciadas e, em todas as etapas da existência, a possibilidade da criação “genial” existir.
Temática complexa e que exige debruçamento acurado. Estou a me lembrar de precioso estudo do médico canadense Elliot Jaques (1917-2003), cujos trabalhos inovadores incluem os concernentes à psicologia cognitiva. Em precioso artigo, “Mort et crise du milieu de la vie”, publicado em 2004 no livro “Crise, rupture et dépassement” (Paris, Dunod – Collection Insconscient et culture, 0rg. René Kaés, 2004), a reunir uma série de outros estudos pertinentes, Elliot Jaques penetra nesse misterioso campo da ideia a resultar na criação de uma obra, da juventude à plena maturidade, consubstanciada nos mais diferentes acervos, impactos e vivências que vão sendo acumulados pelo compositor, escritor, escultor, pintor, filósofo e tantos outros ligados à imensa área da Cultura, no caso, erudita. Durante os mais de onze anos de blogs ininterruptos, já mencionei reiteradas vezes reflexões do autor, contextualizando-as de acordo com os temas propostos. Não obstante as menções, a morte do talentoso compositor António Fragoso em plena juventude motiva uma maior atenção. Leitores atentos impulsionam-me a estender a temática.
Saímos da juventude do compositor António Fragoso (1897-1918) e penetramos nas fases seguintes da existência, pois Elliot Jaques, em seu precioso artigo, aborda a “crise do meio da vida”, a que se situa por volta dos 35 anos, e a da plena maturidade, nas fronteiras dos 65 anos, pormenorizando-se sobretudo na primeira.
Elliot Jaques observa que “aos vinte anos até o início dos trinta, a criatividade tem como característica ser inflamada. Ela é intensa, espontânea, a obra tem a possibilidade de ser definitiva. A maior parte desse trabalho parece ser feito inconscientemente. A produção consciente é rápida, e a velocidade da criação não sendo limitada que pela capacidade do artista registar materialmente as palavras ou a música que lhe servem de expressão”. O autor desenvolve a seguir as crises existenciais a partir da juventude, nomeando duas etapas sensíveis, a “juventude da idade adulta” e a “maturidade da idade adulta”, que terão intrínseca relação com a maneira de criar e o conteúdo da obra. Considera que, no meio da existência, o homem passa por dúvidas, questionamentos a envolver a criação e, por vezes, a perda de entusiasmo decorrente. Enumera quantidade de compositores, literatos, poetas, filósofos, pintores, escultores e outros artistas que, na fase dos 40 anos, passaram por situações que tiveram sensíveis consequências na obra criada.
Nas considerações de Elliot Jaques, a mudança que ocorre na mente do artista nessa fase tem como fator essencial o acervo adquirido, mais as experiências boas e más e a depressão que pode advir. Explica: “A criatividade nas fronteiras dos quarenta anos é ‘esculpida’. A inspiração poderá ser intensa e calorosa. O trabalho inconsciente não é inferior ao precedente. Mas uma grande distância separa o primeiro élan inspirador do produto criado e finalizado. A inspiração poderá surgir mais lentamente. Mesmo se houver brusco jorrar inspiratório, tem-se apenas o começo do processo da criação da obra. A inspiração inicial deve ser exteriorizada no estado bruto. Começa, então, o processo de formação e de construção do produto externo, por sistema de modelagem e remodelagem sucessivas da matéria. Utilizo o termo ‘esculpido’, pois a natureza do material do escultor – é no escultor sobre pedra que eu penso – obriga o artista a manter esse tipo de relação com o produto de sua imaginação criativa. Lá aparece toda uma interação entre, de uma parte, o trabalho inconsciente intuitivo, a inspiração, e de outra parte a percepção atenta do produto externo sendo criado e a sua reação a este”. Elliot Jaques considera raros os exemplos de obras elaboradas e ‘esculpidas’ durante a juventude. Considera: “A diferença no modo de trabalho próprio à juventude ou à maturidade da idade madura é o caráter rápido e ‘esculpido’ da criatividade. Consideremos a mudança concernente à qualidade e ao conteúdo da criatividade. A mudança na qual eu penso é a emergência de um conteúdo trágico e filosófico que conduz à serenidade na criatividade da maturidade da idade adulta, a contrastar com o conteúdo mais tipicamente lírico e descritivo nas obras da juventude da idade adulta”.
Seria plausível considerar que o criador na plena idade madura possa realizar o recolhimento, uma síntese dos procedimentos empregados ao longo da trajetória. Nesse contexto, Jean Gaudefroy-Demombynes considera que “a maioria dos grandes músicos românticos evoluíram, como Goethe, do romantismo ao classicismo, ou a uma espécie de classicisation do romantismo” (Jean Chantavoine et Jean-Gaudefroy-Demombynes. Le Romantisme dans la Musique Européenne. Paris, Albin Michel, 1955). Quando propus a Gilberto Mendes (1922-2016) a criação de um Estudo de Síntese para piano, a complementar a série de Estudos que o grande compositor brasileiro me dedicou a partir de 1989, sugeri que Gilberto empregasse os acordes que se lhe afiguraram icônicos durante sua longa existência. Surgiria o “Étude de Sinthèse” (2004) com referencial acréscimo, pois Mendes arpejaria esses acordes a buscar em suas recordações a fluidez sonora tão a seu gosto, ele que se mostrava um amante das ondulações dos Mares do Sul.
António Fragoso e tantos outros artistas não conseguiram ultrapassar a arrebentação que leva ao mar aberto, pois lhes foi negado o prosseguimento da existência. Todavia, tendo ultrapassado outras etapas da vida, o criador mereceria alcançar a serenidade, não sempre possível, mas almejada. Se a criação envolve mistério insondável, o destino reservado ao criador quanto às possíveis décadas acrescidas sobre o planeta consolidará escolhas e procedimentos.
Which stage of life is more favorable to creativity? Does the output of creative people increase, peak and decline as time goes by? Is it possible to stay creative throughout one’s life span? That’s the subject of this post., based on researchers of the Canadian psychoanalyst Elliot Jaques as stated in his article “Mort et crise du milieu de la vie”.