A saga de um herói imaginário
Jean-Christophe é um evento ético mais do que literário.
Stefan Zweig
(“Berliner Tageblatt”, 22/12/2012)
Para o povo, a injustiça é a desigualdade,
Para a elite, é a igualdade.
Romain Rolland
(“Jean-Christophe”, p. 1263)
Foram duas as minhas leituras do mesmo compêndio de 1595 páginas em papel bíblia (Paris, Albin Michel, 1950). A primeira em 1957 e a segunda no ano 2005. Foi certamente um dos romances que retive indelevelmente na memória. Curiosamente, interessei-me pela obra porque Romain Rolland (1866-1944) foi também biógrafo e entre seus livros tem-se os estudos sobre Beethoven, Gandhi, Tolstoi, Haendel, Péguy, Michelangelo, Ramakrishna, Vivekananda…
Escreve em 1903 uma primeira biografia de Beethoven. Sua admiração inconteste pelo compositor fá-lo edificar, a partir de 1928, a monumental coleção dedicada ao genial compositor alemão, não desprovida de análises de muitas criações, e que se estenderia por sete volumes redigidos até os estertores da existência. Abro parêntesis para mencionar que a tradução para a língua portuguesa foi realizada pelo notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) em três volumes (Lisboa, Cosmos, 1960). A leitura de “Goethe et Beethoven” (1930), segundo da série, levou-me a percorrer com intensidade “Jean-Christophe” (1904-1912), obra dividida em 10 volumes. Romain Rolland escreveria na “Introdução” do romance que “as analogias históricas entre o músico de Bonn se reduzem a alguns segmentos da família de Christophe, no primeiro volume”. Creio que vão além, conscientemente ou não. Romain Rolland acompanha o herói imaginário e acalentado, do nascimento à morte, seguindo-o da Alemanha à França, à Suíça e em seu retorno definitivo a Paris.
Jean-Christophe Kraff, músico imaginário nascido na Alemanha, onde receberia a formação musical que o leva a ser pianista, violinista, regente e compositor meritório, após os primeiros lustros no país natal, onde vive também seus primeiros amores, parte para Paris movido por decepções de várias ordens. Na capital francesa se desalenta e se indispõe com a moral vigente e com a classe artística, mas pouco a pouco vê suas composições serem aceitas. Encontra um grande amigo, Olivier, irmão de Antoinette, que conhecera na Alemanha e que é título do sexto livro. Olivier, ligado a revolucionários, morre em uma escaramuça. No blog anterior mencionei que, na “Introdução” tardia de 1931 para reedição de “Jean Christophe”, o autor tencionava tornar o personagem central um revolucionário também, o que daria destino completamente diverso aos dois livros finais (9 – Le Buisson Ardent, 10 – La Nouvelle Journée).
Saliento a minha percepção após as duas leituras tão espaçadas no tempo. Na primeira abordagem, aos 19 anos, a figura do herói Jean Christophe se me apresentava como inspiração. Romain Rolland, em toda a trajetória de seu personagem, consciente ou inconscientemente, não descarta o adolescente em seus sonhos, mesmo na idade madura de Jean-Christophe, apesar de seus almejos e desencantos frente à vida. Seria possível entender que, para o jovem músico que eu fui, eleger àquela altura Jean-Christophe tem lá suas razões, como anos antes, aos 13 anos, sob contexto outro, escolhera a figura de Enrico, no comovente “Cuore” de Edmondo de Amicis (1846-1908), que, décadas após a publicação, por motivos essencialmente ideológicos, a intelligentsia tentou desconstruir. Como não pensar igualmente num dos livros franceses de maior aceitação pública e êxito editorial absoluto, “Le Grand Meaulnes”, de Alain-Fournier (1886-1914), morto durante a primeira grande guerra? Seu único livro, publicado em 1913, aos 27 anos, apresenta um jovem em sua trajetória fantasiosa e imbuído dos fluidos românticos. Sem o conteúdo de Jean-Christophe, a literatura de Fournier é lírica e cativante. Quanto à criação de Romain Rolland, nos meus 19 anos comungava os anseios do herói e seu comprometimento indelével com a Música – o que também acontecia com o jovem leitor. Na leitura em 2005 o interesse maior foi pelos últimos dois volumes, marcados pelas cicatrizes advindas de sucessos – por vezes efêmeros -, ilusões, amores de diversas intensidades, amizades intensas, confissões, almejos, riscos, espírito libertário, desalentos profundos e resignação de Jean-Christophe, mormente no período a anteceder o desenlace, quarta parte de La Nouvelle Journée, 10º livro da saga.
Os dez volumes de “Jean-Christophe”, inicialmente publicados paulatinamente nos “Cahiers de la quinzaine” de seu amigo, o poeta Charles Péguy (1873-1914) – tragicamente morto na frente de batalha no início da primeira grande guerra -, alcançaram recepção pública expressiva, mas com reservas da crítica. Tem-se de entender que, em tempos entre guerras, a franco-prussiana de 1870-1871 entre a França e Estados alemães dirigidos pela Prússia, e a primeira Grande Guerra 1914-1918, Romain Rolland estava a erigir um jovem alemão com fortes vínculos com a França como personagem capital de seu romance, do berço à morte. Sob outra égide, elegera Beethoven seu compositor preferido e alemão. A aproximação com a cultura da Alemanha seria uma das conotações, entre tantas outras, das críticas chauvinistas a Romain Rolland. Teria passado desapercebida uma frase na segunda parte de La Nouvelle Journée sobre o retorno de Jean-Christophe a Paris, após ter se refugiado na Suíça: “jamais gostaria de rever essa cidade”? (p.1469).
Creio que “Jean-Christophe”, assim como “Citadelle”, de Saint-Exupéry, este rigorosamente sob outra égide, são odes à condição do homem em direção à fraternidade e a um humanismo que está a esvair-se. Romain Rolland constrói o herói gestado amorosamente, distanciando-o de uma vida estéril: “Desgraça à alma que não se sente fecunda, plena de vida e de amor, como uma árvore florida na primavera! O mundo pode honrá-la de diversas maneiras; mas está a coroar um cadáver” (p.383).
Jean-Christophe é o modelo do herói romântico. Tem suas características essenciais. As inúmeras mensagens recebidas pelo autor, mormente de jovens ao longo de duas décadas, evidenciariam a escolha do personagem que, criado, flutuaria através do tempo como paradigma. Beethoven é um farol para Romain Rolland, mas a aura de compositores do período romântico também poderia estar em sua mente, pois confessaria uma certa indisposição para com o modernismo. Jean-Christophe atravessa a existência “acalentado” por seu autor. Criador e criatura se amalgamam. Romain Rolland consegue, através de seu personagem, transmitir suas convicções sobre arte, moral, costumes, fé, música essencial, assim como sobre os objetivos frente à vida: “A maior parte dos homens morre aos vinte ou trinta anos: passado esse marco, esses homens não são mais do que seu próprio reflexo; o resto da vida se escoa enquanto imitam a eles mesmos, repetindo a cada dia mais e mais, de maneira mecânica e também caricata, o que disseram, fizeram, pensaram, amaram nos tempos passados” (p.238). Há a visão clara da Arte como patamar não contaminado pelos interesses econômicos: “…não há nenhuma relação entre uma soma de dinheiro e uma obra de arte, a obra não está acima, tampouco abaixo: ela está fora” (p.1289). Essa apreensão da arte como alheia a poderes por vezes inconfessos é contrária ao que hoje ocorre, ou seja, o caminhar progressivo em direção à civilização do espetáculo, que nega valores culturais sedimentados pela tradição. Confessa in adendo: “…as pessoas atualmente leem rápido e mal, não mais sabem a força maravilhosa que irradia dos livros que bebemos lentamente” (p.1217).
Poder-se-ia considerar uma frase, quase ao final do livro, que tem a sonoridade e o significado de uma oração e sintetiza a transcendência do herói na saga: “Ó minha velha companheira, minha música, tu és melhor do que eu. Sou um ingrato, eu te despedi. Mas tu não me abandonas; não te aborreces com meus caprichos. Perdão! Tu sabes bem, são brincadeiras. Eu nunca te traí, tu jamais me traíste, somos seguros um do outro. Nós partiremos juntos, minha amiga. Fica comigo, até o fim!” (p.1588). (tradução: J.E.M.).
Sobre meu leito, tenho essa passagem manuscrita.
In this second post I comment on my two readings of “Jean-Cristophe”, in 1957 and 2005. The different perceptions have only increased the great appreciation I have always had for this monumental novel. Humanism, culture, art, morals, customs and responsibility permeate the novel. Such qualities have faded over the decades.
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