O conflito estético das gerações

Si jeunesse savait, si vieillesse pouvait.
Provérbio popular

Há tempos que o compositor francês François Servenière não interagia com os textos semanais publicados todos os sábados. Após parte da série de apreciações sobre pianistas notáveis do passado, François Servenière lança um contraponto à posição que defendo sobre grandes pianistas desde os primeiros posts. Entendendo sempre que a tradição perpetrada pelos insignes mestres deveria ser o alicerce para as novas gerações de intérpretes, considero que a observância às lições do passado, que, sob outra égide, não despreza a fantasia de cada pianista, é uma das razões fundamentais para que as mensagens das ilustres figuras anteriores permaneçam como um farol a indicar o caminho. Importa transmitir ao prezado leitor considerações outras sobre o tema e François Servenière, compositor dezenas de vezes presente nos blogs e de quem gravei, para o selo francês Esolem, inúmeras e esmeradas composições, expõe conceitos de muito interesse pela agudeza com que aborda tema tão propenso à dialética.

“Escutei as gravações de Marguerite Long e Arturo Benedetti Michelangeli. Este era um de meus favoritos entre tantos da minha coleção de vinis Deutsche Grammophon, que terei o prazer de escutar novamente tão logo meu estúdio esteja pronto e haja aparelhagem ideal. Copiosamente ignorados desde a aparição do digital nos anos 1980, haverá ruídos devido aos atritos, mas que prazer será esse salto de volta às terras analógicas, após 40 anos a viajar no espaço digital! Sim, evoluímos no quesito interpretação e na qualidade das gravações, mas a arquitetura da interpretação foi fixada pelos gênios do piano.

Você está dividido entre duas épocas e certamente perturbado pela nossa [Servenière nasceu em 1961]. O fato é comum a todos nós. Na minha faixa etária parece-me que o quiasmo filosófico tem espaço entre os cinquenta ou sessenta anos, ou quando percebemos as mudanças profissionais em curso e as transformações das práticas, não mais reconhecendo o nosso mundo, que evolui certamente. Doravante somos tratados de velhos imbecis pelos nossos descendentes. Há a célebre frase: ‘se a juventude soubesse, se a velhice pudesse’.

Os arquivos acumulados de todo um passado, como você e tantos musicólogos detêm, deixam indiferentes as gerações novas, conectadas com o Facebook e os consoles de jogos eletrônicos. É para essas gerações que a Microsoff inventa suas geringonças.

Não, não, não. Escutamos amorosamente as gravações de antanho, observando as partituras de nossos mestres. Há presentemente uma fase de declínio mundial da cultura, ao mesmo tempo em que a China, como você relata em seus blogs, conserva nossos saberes e nossas práticas. Essa tomada de consciência é geral e produzirá certamente um sobressalto no Ocidente.

Clique para ouvir de François Servenière, na interpretação de J.E.M., Promenade sur la Voie Lactée:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

O classicismo renasce sempre após as fases de declínio e de caos. É a história que se repete. Babilônia, Atenas, Roma, a Europa renascentista e, após, o iluminismo, etc, etc… Felizmente a imensidão do tempo está inscrita em nossos métiers através das práticas, transmitidas de geração para geração. Não obstante, não estou desolado, não sofro por nenhuma perda nem me alegro por algum benefício quando comparamos os antigos tempos com os novos. Ontem foi ontem, hoje é hoje. É fato. Não há um ‘era melhor antes’ ou ‘é pior hoje’. Isso não existe. Essa reflexão está apenas em nossas mentes ligadas ao envelhecimento e ao rebaixamento que naturalmente sofremos, ligados à nostalgia de nossa juventude perdida a contrastar com aquela dos jovens, que se apresenta brilhante e plena de orgulho, nem tão diferente do que foi a nossa.

As alterações do tempo se nos deparam fundamentalmente impenetráveis, como os ciclos das vagas e das marés, das tempestades e das previsões para a semana em curso. Necessário se faz adaptar-se ao tempo presente tão veloz, rolo compressor que tudo devora, até os acontecimentos da semana que passou. Podemos libertar-nos do destino e do acaso pelas previsões, mas o gênio é tão imprevisível como a próxima semana, nossos encontros, nossos projetos, as encruzilhadas de nossas vidas. Prevemos, construímos, apreendemos, mas é possível provocar o destino, ou ao menos controlá-lo, através do conhecimento acumulado e da formação permanente.

Amo como você ouvir as gravações antigas. As velhas partituras não envelhecem tão rapidamente, pois a edição gráfica tem menos defeitos do que a edição fonográfica. Hoje temos a chance de conseguir edições fonográficas que poderão desafiar mil anos de História, se não houver guerra nuclear. Contudo, essa tecnologia não substituirá jamais o talento e o trabalho de mãos de um artesão. A potência do programa do foguete Saturno V (Apolo sobre a Lua com Armstrong) era menor do que a de um Iphone de primeira geração. A potencialidade do sonho presente em nossas mentes não poderá jamais ser substituída pelos algoritmos de um robô e as gravações dos gênios do piano, que você não cessa de evocar, mostram a qual ponto podemos ser medíocres com uma Ferrari e geniais com uma bicicleta.

Clique para ouvir de François Servenière, na interpretação de J.E.M., o Étude Cosmique nº3, Ponto de Luz:

https://www.youtube.com/watch?v=EssYC_2G1Jc&list=PL1j-Jq5yk8ixxWoJcV7YYeH91BEaqTDsL&index=3

Presentemente fico pasmo ao verificar a mediocridade filosófica dos inventores de programas contemporâneos, os riquíssimos proprietários das GAFAMs. Trilhardários, lobotomizados, embrutecidos pelas suas tecnologias hiperpujantes. Acredito, sob outra égide, que o olhar sincrético possa ser perigoso também.

Obrigado por me trazer um pouco de reconforto através de meu dileto Ravel e do apogeu de sua obra nessas duas interpretações além do tempo. Obrigado por esse raio de sol. A depender de meus humores, o segundo movimento do Concerto de Ravel me traz a paz. Na realidade, não apenas esse andamento, mas também o Requiem de Fauré”. Tradução, J.E.M.

Servenière aponta para aspectos fulcrais, como a presença desse eterno hoje que se transfigura a cada dia. Somos impotentes frente às transformações do tempo, que por vezes nos espantam. Se costumes, moral, gosto, hábitos sofrem alterações, quando não descaracterizam-se por completo, entender o presente se faz necessário, caso contrário agiríamos como a avestruz.

Continuarei paulatinamente a apresentar artistas dessa plêiade de grandes pianistas de antanho. As inúmeras mensagens que recebo, vindas do país e do Exterior, são estímulo nesse sentido. Esses mestres não podem ser esquecidos. O estágio excepcional de tantos jovens pianistas que chegam ao Ocidente, procedentes do Leste Europeu e, sobretudo, em “legião”, do Extremo Oriente, só foi possível devido ao legado deixado pelos notáveis intérpretes do passado que preservaram a tradição. Se o modus faciendi desses talentosos jovens sofre o impacto mediático trazido pelas câmaras e holofotes, o que implica concomitantemente à récita a presença marcante do gestual e da aparência, tem-se no caso outro campo de debate. Sim, as gravações, algumas com vídeos, desses pianistas anteriores à era digital não têm a mesma qualidade das novas aparelhagens para tomada de som. A frase de Servenière é emblemática: “podemos ser medíocres com uma Ferrari e geniais com uma bicicleta”. No pórtico dos 83 anos sou um admirador confesso de alguns pianistas da média e nova geração. Antolha-se-me, contudo, que a anima de tantos deles estaria ainda in progress, enquanto a interpretação desses insignes mestres do passado, geralmente registrada na plena maturidade, num período histórico outro, traz aos que os sucedem princípios que não podem ser negligenciados. Lembrar-se desse passado é necessário, pois, se elo for rompido, corre-se o risco do arbítrio interpretativo.

It has been a while since the French composer François Servenière collaborated with my blog. After part of the series with my appreciation of notable pianists of the past, François Servenière establishes an interesting counterpoint to the position I have held about such great interpreters since the first posts.