Navegando Posts publicados em janeiro, 2016

Idalete Giga Interpreta Pintura Cósmica de Luca Vitali

Na terra das estrelas,
não há brilho menor.
P’ra que ser melhor?
Viva a luz da vida,
multiplique-se, divida:
viva a vida.
Sendo o senhor, só Amor.
Seja, plante que o sol,
garante.
Sofra a safra, seja
amante!
Luca Vitali
(Amo-te-me)

O post de 26 de Dezembro (“Mais um Ano se Esvai”) suscitou, por parte da dileta amiga Idalete Giga, várias considerações. Chamou-me a atenção a leitura que a ilustre especialista portuguesa em Canto Gregoriano realiza da tela Níquel, do saudoso amigo e notável artista plástico Luca Vitali. Antes de inserir a interpretação de Idalete, precisaria circunstâncias que me levaram, em duas gratas oportunidades, a ouvir a palavra “guardião”, termo que adquire transcendência a partir do instante do acontecido, momento único a ser retido e a implicar responsabilidade.

Ser guardião não é ter a posse de um bem, posse esta que, segundo o ilustre jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892), é a aparência da propriedade. Ser guardião apreende condições ético-morais. Compete a ele guardar com o maior zelo o que lhe foi confiado.

Estou a me lembrar que em 1980 apresentei, em quatro recitais no MASP, a integral para piano de Claude Debussy. Ao ler noticiário nos jornais, Gerard Killick, empresário na área de turismo, ligou-me a dizer que tinha uma surpresa para mim. Desconhecia o senhor, mas compareci ao seu escritório. Após amenidades, disse-me que sua mãe, a francesa  Ada Killick (1898-1978), fora a última professora de piano de Chouchou Debussy (1905-1919), única filha do grande compositor, morta precocemente vítima de difteria. Com carinho Ada guardara as três últimas cartas de Chouchou escritas após a morte do pai, desobrigando-a das aulas. Cartas muito bem redigidas, que revelavam o talento singular de Chouchou. Gerard abre uma gaveta e entrega-me um rolo de papelão bem manuseado, a conter as três cartas e respectivos envelopes. Comovido, disse-me que doravante seria eu o guardião dessas sensíveis missivas. Alguns anos depois, conversando sobre as cartas em questão com o saudoso e ilustre musicólogo francês François Lesure Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale em Paris e maior especialista em Debussy na segunda metade do século XX, mostrei minha intenção de doá-las ao Centre de Documentation Claude Debussy, instalado no mesmo prédio, à Rue Louvois, 2. Um ano após, concretizei a doação. As cartas foram publicadas no apêndice de meu livro “O Som Pianístico de Claude Debussy” (São Paulo: Novas Metas, 1982) e, bem tardiamente, nos “Cahiers Debussy” (Paris: Centre de Documentation Claude Debussy, nº 31 / 2007).

Luca Vitali sempre soube que Níquel era meu quadro preferido da Série Cósmica, constituída de sete acrílicos sobre tela. Poucos dias antes de sua morte pintou o oitavo da série, Outono Cósmico, e dedicou-o ao compositor e pensador francês François Servenière. Fui o portador do grande tubo a conter a tela, entregando-o ao músico francês. Após a morte de Luca, seus filhos organizaram uma exposição onde estariam expostas telas e desenhos do pintor para vendas informais. No dia da inauguração, um aguaceiro derrubou árvores diante da casa onde se realizaria a exposição, na rua Surubim, no Brooklin, e a mostra foi adiada sine die. Um dos filhos de Luca, o bom músico improvisador Rodrigo, também sabia de meu interesse pela tela. Em meados de 2015, Rodrigo liga-me, a dizer que traria Níquel à minha casa. Emocionei-me quando Rodrigo afirmou que ele e o irmão Alexandre decidiram que eu seria o guardião da grande tela de seu pai (90,0 x 140,0). A pintura doravante, até o fim de meus dias, ficará sob minha guarda. Coloquei-a na parede que corresponde ao lance da escada. Não há como não contemplá-la e admirá-la várias vezes ao dia.

Voltemos à querida Idalete Giga. Após a leitura do mencionado post, a amiga pormenoriza-se na tela de Luca e sua interpretação sensível e onírica é tão expressiva que resolvi partilhá-la com os amigos neste ainda início de 2016. Idalete acompanha as mutações da cor. Entende os níveis, vê e sente beleza no todo e o resultado não só é expressivo, como unificador. Eis sua mensagem a descrever Níquel:

“Foi muito oportuno e também uma homenagem ao querido e saudoso Luca Vitali ter inserido no seu último post a sua pintura Níquel, da Série Cósmica. É uma das que mais me impressionam. Ele utilizou e combinou cores para simbolizar (na minha humilde opinião) tudo o que se relaciona de forma harmoniosa com a LUZ versus Trevas. Olhando a pintura, no fundo, à esquerda, aparece o esplendor do laranja, que simboliza a autoconfiança, o conhecimento prático, a prodigalidade, a coragem, a genialidade e a vitalidade. Mistura de forma sábia o laranja com o dourado. Este simboliza a iluminação espiritual. Na esfera maior, o azul e o violeta estão também quase fundidos. O azul simboliza o espírito da verdade, categoria mais elevada da inteligência. É a cor da contemplação, serenidade, santidade, reflexão, harmonia. A cor violeta é a cor do Mestre Espiritual, simboliza a perenidade, a nobreza, o espírito artístico, o misticismo. A esfera menor (satélite da esfera maior) aparece-nos em primeiro plano, mostrando o esplendor da cor prateada em sintonia com a cor azul. A cor prateada simboliza o fio de ligação à inteligência cósmica. Ilumina o caminho. É a pura contemplação….”.

A interpretação de Idalete calou-me fundo, pois diariamente a tela diz-me algo. A pintura de Luca Vitali, quando penetra no universo cósmico e abstrato, é de riqueza absoluta. Em nossos encontros semanais para os almoços às terças-feiras no Natural da Terra, em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, sempre falava com fervor do Cosmos. Sob outra égide, estou a me lembrar de que, certo dia, Luca, Marisa, sua dedicada companheira de tantos anos, e eu fomos à uma exposição de pintura contemporânea. Confuso ao ver tantas tendências, indaguei-lhe “O que é realmente bom nessa mostra?”. Luca, com aquela maneira tranquila de dizer as coisas com sentido, respondeu-me: “De longe percebo o talento. A arte abstrata nunca poderia ser mistificação, e aqui há muitas”. O prêmio Nobel de literatura Mario Vargas Lhosa não mais frequenta mostras de arte contemporânea, mercê desses desvios na arte ( “La Civilizatión del Espectáculo”).

Ao olhar Níquel todos os dias, verifico a diversidade do gestual, o esmero com o acabamento, a inclinação de Luca sempre voltada à sinceridade e ao respeito íntegro relacionado à sua arte. Idalete apreendeu a essência essencial de Níquel, apesar de ter visto a pintura através da ilustração. Revela Idalete uma profunda sensibilidade e sua interpretação enriqueceu meu universo visual que terá, doravante, sempre um novo olhar, uma nova leitura…

After seeing my dear friend and late Luca Vitali’s painting “Níquel” in one of my posts, Idalete Giga ─ also a friend, teacher and choral conductor living in Portugal ─ gave me her own interpretation of Luca’s work, which grabbed her attention through the use of colors. Revealing great sensibility, her particular view enriched and deepened my own reading of the painting. In this post I transcribe Idalete’s message, so as to share with readers her meaningful relationship with “Níquel”.

 

 

 

 


Fernando Lopes-Graça em Pauta

O ouvinte come aquilo que lhe é servido,
com apetite ou desprazer,
mas na realidade ele só se interessa
pelo repertório que está acostumado a ouvir.
Arthur Honegger
(“Je suis compositeur”)

Todas as leis da linguagem musical,
todas as regras que constituem o ‘métier’ do compositor,
nada são, se não as ligarmos à relação sonora,
à existência concreta da música executada.
André Souris
(“Condition de la Musique”)

Pensamentos contraditórios invadem-me. Tocar a magistral obra de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX, tem sido uma das missões a que me propus, pois o compositor sempre foi um de meus eleitos. Na Europa, mais e mais Lopes-Graça ocupa espaços e recentemente (post de 05/12/2015) comentei a gravação impecável das 23 Músicas Festivas em dois CDs realizada pelo notável pianista António Rosado, assim como a edição da coleção em quatro cadernos. A discografia portuguesa anualmente tem a acrescê-la importantes registros de obras inéditas ou de regravações de obras de Lopes-Graça, realizadas por músicos portugueses de mérito. Dois volumosos compêndios foram publicados recentemente, contendo cada um 12 cadernos com centenas de cantos corais. Grava-se, publica-se em Portugal.

Tenho insistido nestes últimos anos no tópico repetição de repertórios nas salas de concerto em São Paulo. Obras desconhecidas de nosso público, sejam elas de compositores estrangeiros, românticos, modernos ou contemporâneos, que não portugueses, por vezes são apresentadas na cidade, mormente por conjuntos orquestrais. De maneira geral têm essas composições uma primeira e única audição brasileira. Seria possível entender como condescendências de quem promove e dos que interpretam, pois essas obras acabam não se incorporando ao repertório rotineiro. Contudo, é um fato real, constrangedor diria, ignorar a produção musical portuguesa, como se estivessem nossos músicos e nossas entidades a clamar, “a música de concerto de Portugal não está à altura”. Se exceções quanto às apresentações acontecem, ficam elas reservadas a esse compartimento sempre constrangedor da excepcionalidade in extremis. Pareceria ocorrer uma certa “vergonha” por parte de uma pseudo intelectualidade brasileira que prefere o relacionamento da categoria em torno de autores outros, da Europa e Estados Unidos, preferencialmente. Se na literatura elegeram Fernando Pessoa (1888-1935) e o prêmio Nobel José Saramago (1922-2010), verifica-se, quanto ao primeiro, a consagração consensual pelo planeta e, ao segundo, que a premiação tem  sempre resultado mediático e “faz bem” a tantos egos, que doravante se debruçam sobre autores “consagrados”. O poder dos holofotes é absoluto e são tantos os interesses envolvidos! Abrigar-se sob a luz é a aparência da verdade! Vitorino Nemésio (1901-1978) e Miguel Torga (1907-1995), largamente meus escritores portugueses contemporâneos preferidos, teriam essa “carinhosa” acolhida? Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Eugénio de Andrade (1923-2005), poetas do maior mérito, são divulgados ou estudados em nossas escolas? Será possível entender que, no âmbito acadêmico, trabalhos tenham sido redigidos ou defendidos, mas sempre nessa excepcionalidade. Na música, sem contar Lopes Graça em causa, compositores como Carlos Seixas (1704-1742), Domingos Bomtempo (1775-1842), Viana da Mota (1968-1948), Luís de Freitas Branco (1890-1995), Jorge Peixinho (1940-1995), Eurico Carrapatoso (1962- ), entre outros, estão distantes anos luz das mentes de nossos músicos, tornando imperiosa a ação para conhecimento, assimilação e divulgação de preciosa produção. Por vezes a sensação que se tem é a de que a “intelligentsia” brasileira lamenta ter sido o Brasil colonizado pelos portugueses. Digo, sensação. Ao perguntar a um conhecido promotor de música paulistano, mediático e respeitado entre os pares, se conhecia outro intérprete português que não a senhora que aqui sempre se apresenta, não soube responder. Insisti em outra questão, Lopes-Graça. Sim, ouvira algumas obras que apresentei, ou seja, campo das exceções. Nada mais!

Estou a me lembrar de meu já longínquo tempo na Universidade. Havia sempre desconfiança da maioria dos colegas quanto aos compositores portugueses. Era eu o único a oferecer aos alunos obras de mérito criadas em Portugal, do barroco à contemporaneidade. Ultimamente houve o lamentável pronunciamento do último ex-presidente brasileiro na Espanha, atestando despreparo e distanciamento da cultura, pois denegriu a herança legada pelos portugueses – vindo dele, tudo é possível – , recebendo a seguir forte indignação da mídia do país europeu. Num amplo sentido, verifica-se que há voluntária corrente oculta que incentiva essa minimização, ao desprezar Portugal como agente primordial para a formação de nossas culturas. É fato. Creio também que o ambiente político e as gestões culturais e educadoras hora vigentes, hélas, tendam ao distanciamento maior, preocupados que estão mais com promoções de alguns países que mantém regimes a eles simpáticos da América Latina e da África.

É pois motivo de surda alegria e esperanças voltadas às mentes que tendem a se abrir que darei o recital no dia 30 de Janeiro na Sociedade Brasileira de Eubiose, inteiramente dedicado às obras de Fernando Lopes-Graça. A apresentação da récita será do competente músico  Walter Lourenção. Em Outubro de 2015, três dias foram consagrados à obra de Lopes-Graça no ciclo “História e Viagens”, realização da Unibes Cutural e do Consulado Geral de Portugal em São Paulo. Houve a participação da mezzo-soprano portuguesa Rita Morão Tavares e do musicólogo e Professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso.

No programa, teremos, na primeira parte, o Epitáfio para o Autor do tríptico Três Epitáfios, compostos em 1930, quando Lopes-Graça tinha apenas 24 anos. Das nove Músicas Fúnebres (1981-1991), contraponto às 23 Músicas Festivas, apresentarei duas, a finalizar a primeira parte com uma obra prima do compositor, Canto de Amor e de Morte (1961), criação que, ao ver de Jorge Peixinho e Mário Vieira de Carvalho, constitui uma cumeeira em toda a produção portuguesa. Já me referi, em blogs anteriores, à atração de Graça pelo tema morte, não em uma visão prosaica e natural, mas sob a égide da transcendentalidade, mormente em Canto

Clique para ouvir (Google Chrome ou Internet Explorer), com José Eduardo Martins, as seguintes gravações de Viagens na Minha Terra, de Fernando Lopes-Graça:

Na segunda parte apresentarei obras que evocam uma das tendências mais expressivas de Lopes-Graça, o afeto que perdurou durante toda existência pelo povo mais simples, pelas freguesias, vilarejos e vilas. Seria o contato permanente com a gente dessas localidades uma de suas temáticas primordiais. Escolhi quatro segmentos, que integram a coletânea Música de Piano para Crianças e que especificam destinações, e as célebres 19 peças que constituem Viagens na Minha Terra, obra que finalizará o recital.

Interpretar Lopes-Graça não é apenas apresentar repertório a mais. Representa cultuar um dos grandes compositores da segunda metade do século XX, praticamente ignoto em nosso país, herdeiro de tantas tradições portuguesas. Oxalá mentes se abram…

On my forthcoming recital in São Paulo next January 30, entirely dedicated to works of Lopes-Graça, the greatest composer of the twentieth century in Portugal, virtually unknown in Brazil, heir to so many Portuguese traditions. Let us hope music societies open to the urgent need to introduce audiences to new repertoire pieces ─ among them a lot of excellent music composed in Portugal from the Baroque to the present ─ instead of sticking to a narrow stream of standard works from the past.

 

 

 

 


O autor se pronuncia após resenha

Le premier qui dit la vérité doit être exécuté.
Guy Béart (1930-2015)
(Canção ‘La vérité’)

Depois da minha resenha de “Bien Faire et Laisser Blaire”, de François Servenière, recebi mensagem do autor que tem muito interesse, pois algumas outras interpretações de seu livro enriquecem o conteúdo já explicitado.

Escreve Servenière:

“Qual a razão de ter apreciado a crítica que o amigo fez de meu livro em seu blog? Pelo fato de que traduz a realidade de meu texto. Sim, meu livro tem segmentos extremos, mas nossa realidade mundial, europeia e humana atual é também extrema. Busquei apenas as causas, sem preocupação em tornar a publicação uma enciclopédia ou uma tese. Tão somente uma reflexão global, que se apoia sobre o real nessa minha faixa etária após o cinquentenário.

Não se trata de uma análise dos últimos quinze dias, mas sim uma reflexão que começou a ser delineada há 15 anos, a partir de um acervo de informações e debruçamentos acumulados em 30 anos. Meu texto pode desagradar e cada um fará seu julgamento. Quando eu falo da idiotice, não tenho ilusões, pois poderei ser alvo de críticas, como todo mundo, aliás.

A sua resenha de ‘Bien Faire Laisser Braire’ (‘Fazer bem feito e deixar ladrar ou zurrar’) está universitariamente exata. Você soube extrair as paixões existentes no livro. Qual a razão de entendermos formidáveis os livros dos grandes autores do passado, Shakespeare, Voltaire, La Fontaine, Goethe, Kant, Cervantes… (lista imensa). Por uma razão apenas: eles não mentiram sobre suas épocas. São analistas lúcidos e cruéis. E Deus sabe que correram risco de morrer graças aos seus testemunhos – ‘E sei que ela gira’ (Galileu) -. A verdade contida em suas revelações nunca agradaram a monarcas e senhores feudais, às ideologias e às circunstâncias momentâneas, aos interesses e aos lobbies, friso, nunca. Nada de novo sob o sol: no Brasil e na França, ainda vivemos esse drama, malgrado a imprensa dita ‘livre’ (hum, hum)!!! Hoje, os monarcas não matam pela verdade estampada que os desagrada, mas mantêm associações e editam leis para impedir que a verdade chegue ao firmamento.

A sua crítica é formidável, pois você vê meu livro como ele é. Na forma bruta, sem concessão, no limite, sobre a corda esticada, como afirma, se comparado às novas normas do pensamento único, que encolhe o debate à velocidade da luz. Estou a me lembrar da história do repórter ou fotógrafo de guerra. O fotógrafo de guerra tira as fotos, majoritariamente horríveis: massacres, fome, execuções sumárias… Ao voltar para casa, colocas as imagens no computador sobre photoshop para os profissionais contemporâneos. Que pensaríamos nós se essas fotos fossem retocadas para serem adaptadas para o público, para o editor, etc…, pelo dinheiro tão somente? Diríamos que ele não teria feito seu trabalho. Sinto que fiz meu trabalho.

Procurei, logicamente através de meu prisma, traduzir tudo aquilo que senti e vivi desde minhas origens. Tentei destruir nessas crônicas tudo que pudesse – programações mentais de educação e do meio social de origem cristã, da direita e da esquerda de um cristianismo por vezes comunista, rural, comercial, artístico, universitário e também voltado à medicina – alterar a crua visão da verdade e a leitura de nossa conjuntura. Reli o texto ao menos 300 vezes. Consegui, a partir de uma análise de vários anos, liberta-me daquilo que pudesse sugerir a subjetividade em detrimento do essencial, a resultar portanto a transparência da objetividade. Daí ter inserido cifras, fatos e consequências múltiplas em tantas áreas (capítulos X, XI, XV, XX). Busquei sempre colocar-me na posição de um extraterrestre que, ao chegar à Terra, descobrisse a civilização humana, a criticá-la sem piedade nem afeto, sem conluio de qualquer espécie e respeito pelas suscetibilidades individuais e coletivas. Quis sempre guardar esse olhar e afrontar o horror, mesmo que essa atitude pudesse desagradar minha genealogia, meus antepassados, pois não deixo de ser devedor de toda a herança que me legaram, sob múltiplas formas. Procurei ver sob essa casca humana protetora que constitui a cultura, o bom, o belo, o justo, deixando de lado toda programação geográfica e histórica. Eis o meu propósito, pois.

Muitas vezes ou sempre, pelo menos assim deveria ser, a bondade se encontra no de profundis de cada um de nós. Vê-se que estamos diante de uma busca incessante sem fronteiras. Meu livro, na realidade, está sempre a transmitir essas ideias. Abandonai vossas barreiras mentais!  Guardai vossas fronteiras e vossas leis para proteger vosso microcosmos como se protege um jardim, que nada mais é do que fruto de um trabalho. Todavia, abri vossos corações à alteridade, viajai! Era um pouco a filosofia do grande Maurice Ravel: “Sou um internacionalista por filosofia, mas nacionalista em arte”.

A realidade que escrevo, vivia-a, mensurei-a, tive pesadelos e noites brancas para chegar a esses mecanismos. Por vezes relâmpagos de lucidez surgiam-me em plena noite, nada de excepcional, aliás, pois ocorre a todo pensador ao refletir sobre seu mundo, sem cessar. Adquiri o hábito há anos de ter meu laptop ao lado de minha cama para apreender ao vivo a reflexão. A construção do livro foi fruto de dezenas de horas de debruçamento, a fim de compreender um mecanismo ou outro, em todos os domínios de minhas fronteiras mentais: filosofia, música, barco, navegação, montanha, ciência, etc… Como na música, foi necessário, sobretudo, não perder o fio condutor da construção mental. Criadores, autores, artistas e tantos outros, que têm a mente em ebulição, conhecem esse fulgor. Pode ocorrer no carro, sob uma ducha, correndo, sobre uma bike elíptica, no sonho, ou, in extremis, na conjunção de tantos fatores. Um espírito em vigília, um espírito que trabalha, fá-lo do primeiro ao último dia, sem cessar… A fadiga nessa busca permanente percebe-se no olhar, nos traços. O repouso basicamente não existe.

Agradeço-lhe pela crítica, longa, pensada, sem derivativos, a afrontar e a descrever meu texto na sua mais profunda autenticidade. Já previa que determinadas passagens pudessem desagradá-lo, você, cristão e humanista. Sabia contudo de sua abertura intelectual maior. Soube você extrair de seu paradigma mental razões para resenhar meu livro em seu aspecto real. Você fala das polêmicas! Bem entendido, tudo é polêmico, do grego antigo πόλεμος, pólemos (guerra). Estamos em guerra contra o obscurantismo e o totalitarismo. E, como descrevi, essa guerra é multiforme, multipolar, a encontrar sua essência nos mesmos erros e nas ideologias que quiseram pela força criar o ‘novo homem’ ou ‘nova humanidade’, os socialismo, comunismo, nacional-socialismo, islam e uma parte das tradições talmúdicas e bíblicas que não foram verdadeiramente pensamentos humanistas na origem. O fundamentalismo e seus efeitos monstruosos têm origem nesses textos. É fato e de fácil comprovação. A guerra evidentemente, contra a civilização no sentido da civilidade. Não entre as civilizações. Guerra entre bárbaros e os civilizados. É tudo.

Nós dois almejamos um só caminho, o da verdade, e ela faz mal. Não seguimos a verdade conjuntural, geográfica ou cultural, religiosa ou doutrinária, mas a verdade humana naquilo que ela tem de mais ontológico, aquela que emana das profundidades do DNA. E a música, nesse sentido amplo, não pode mentir. Ela está fora do campo ideológico, pois a música é ‘DNAdística’, mediúnica. Aqueles que pretenderam colocá-la no campo ideológico no século XX deram-se mal. Recebem no rosto o boomerang (analogia política/música).

Enfim, ontologicamente, essencialmente: por que, qual a razão de aqui estarmos, para qual propósito? Kant, Spinoza, Shakespeare, a Bíblia, o Torá, o Talmud… certamente propõem as chaves. Qual a razão para agirmos assim? Por que fazemos a guerra e a paz e, após 30 anos, refazermos ainda conflitos exterminadores, sempre invocando razões bem próximas, como exponho no subtítulo de meu livro ‘Crônica da água que corre sob as pontes sem jamais retornar acima, exceção graças à evaporação’ (a vida é um ciclo)? Sempre, sempre, malgrado a relatividade de Einstein, as mesmas causas produzem desgraçadamente os mesmos efeitos. O século XX sofreu com a sua descoberta e com sua consequência filosófica, o relativismo. Tudo passaria doravante a ser relativo e nada mais teria o valor real, diria, batalha de cínicos! Tentei provar que todas essas controvérsias eram falsas, apesar da justeza teórica sobre pontos precisos. Vivemos, mesmo que seja em forma de ondas ou de influências macro/microscópicas ou nanoscópicas, realidades. Os músicos integram essa certeza desde o nascimento da música” (tradução: JEM).

Servenière finaliza a enviar-me inúmeros aforismos pertinentes à desavença, à guerra, à discórdia, à leitura preconceituosa. Mencionaria o primeiro, bem apropriado ao conteúdo de seu livro e determinadas interpretações que dele deverão advir: “Quando o sábio aponta para a lua, o idiota olha seu dedo” (provérbio chinês).

In last week’s post I published an appreciation of François Servenière’s book “Bien Faire et Laisser Blaire”. Today I publish the author’s comments on my review, suggesting other interpretations that only enrich the understanding of his book.