Fernando Lopes-Graça em Pauta

O ouvinte come aquilo que lhe é servido,
com apetite ou desprazer,
mas na realidade ele só se interessa
pelo repertório que está acostumado a ouvir.
Arthur Honegger
(“Je suis compositeur”)

Todas as leis da linguagem musical,
todas as regras que constituem o ‘métier’ do compositor,
nada são, se não as ligarmos à relação sonora,
à existência concreta da música executada.
André Souris
(“Condition de la Musique”)

Pensamentos contraditórios invadem-me. Tocar a magistral obra de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), um dos mais importantes compositores da segunda metade do século XX, tem sido uma das missões a que me propus, pois o compositor sempre foi um de meus eleitos. Na Europa, mais e mais Lopes-Graça ocupa espaços e recentemente (post de 05/12/2015) comentei a gravação impecável das 23 Músicas Festivas em dois CDs realizada pelo notável pianista António Rosado, assim como a edição da coleção em quatro cadernos. A discografia portuguesa anualmente tem a acrescê-la importantes registros de obras inéditas ou de regravações de obras de Lopes-Graça, realizadas por músicos portugueses de mérito. Dois volumosos compêndios foram publicados recentemente, contendo cada um 12 cadernos com centenas de cantos corais. Grava-se, publica-se em Portugal.

Tenho insistido nestes últimos anos no tópico repetição de repertórios nas salas de concerto em São Paulo. Obras desconhecidas de nosso público, sejam elas de compositores estrangeiros, românticos, modernos ou contemporâneos, que não portugueses, por vezes são apresentadas na cidade, mormente por conjuntos orquestrais. De maneira geral têm essas composições uma primeira e única audição brasileira. Seria possível entender como condescendências de quem promove e dos que interpretam, pois essas obras acabam não se incorporando ao repertório rotineiro. Contudo, é um fato real, constrangedor diria, ignorar a produção musical portuguesa, como se estivessem nossos músicos e nossas entidades a clamar, “a música de concerto de Portugal não está à altura”. Se exceções quanto às apresentações acontecem, ficam elas reservadas a esse compartimento sempre constrangedor da excepcionalidade in extremis. Pareceria ocorrer uma certa “vergonha” por parte de uma pseudo intelectualidade brasileira que prefere o relacionamento da categoria em torno de autores outros, da Europa e Estados Unidos, preferencialmente. Se na literatura elegeram Fernando Pessoa (1888-1935) e o prêmio Nobel José Saramago (1922-2010), verifica-se, quanto ao primeiro, a consagração consensual pelo planeta e, ao segundo, que a premiação tem  sempre resultado mediático e “faz bem” a tantos egos, que doravante se debruçam sobre autores “consagrados”. O poder dos holofotes é absoluto e são tantos os interesses envolvidos! Abrigar-se sob a luz é a aparência da verdade! Vitorino Nemésio (1901-1978) e Miguel Torga (1907-1995), largamente meus escritores portugueses contemporâneos preferidos, teriam essa “carinhosa” acolhida? Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e Eugénio de Andrade (1923-2005), poetas do maior mérito, são divulgados ou estudados em nossas escolas? Será possível entender que, no âmbito acadêmico, trabalhos tenham sido redigidos ou defendidos, mas sempre nessa excepcionalidade. Na música, sem contar Lopes Graça em causa, compositores como Carlos Seixas (1704-1742), Domingos Bomtempo (1775-1842), Viana da Mota (1968-1948), Luís de Freitas Branco (1890-1995), Jorge Peixinho (1940-1995), Eurico Carrapatoso (1962- ), entre outros, estão distantes anos luz das mentes de nossos músicos, tornando imperiosa a ação para conhecimento, assimilação e divulgação de preciosa produção. Por vezes a sensação que se tem é a de que a “intelligentsia” brasileira lamenta ter sido o Brasil colonizado pelos portugueses. Digo, sensação. Ao perguntar a um conhecido promotor de música paulistano, mediático e respeitado entre os pares, se conhecia outro intérprete português que não a senhora que aqui sempre se apresenta, não soube responder. Insisti em outra questão, Lopes-Graça. Sim, ouvira algumas obras que apresentei, ou seja, campo das exceções. Nada mais!

Estou a me lembrar de meu já longínquo tempo na Universidade. Havia sempre desconfiança da maioria dos colegas quanto aos compositores portugueses. Era eu o único a oferecer aos alunos obras de mérito criadas em Portugal, do barroco à contemporaneidade. Ultimamente houve o lamentável pronunciamento do último ex-presidente brasileiro na Espanha, atestando despreparo e distanciamento da cultura, pois denegriu a herança legada pelos portugueses – vindo dele, tudo é possível – , recebendo a seguir forte indignação da mídia do país europeu. Num amplo sentido, verifica-se que há voluntária corrente oculta que incentiva essa minimização, ao desprezar Portugal como agente primordial para a formação de nossas culturas. É fato. Creio também que o ambiente político e as gestões culturais e educadoras hora vigentes, hélas, tendam ao distanciamento maior, preocupados que estão mais com promoções de alguns países que mantém regimes a eles simpáticos da América Latina e da África.

É pois motivo de surda alegria e esperanças voltadas às mentes que tendem a se abrir que darei o recital no dia 30 de Janeiro na Sociedade Brasileira de Eubiose, inteiramente dedicado às obras de Fernando Lopes-Graça. A apresentação da récita será do competente músico  Walter Lourenção. Em Outubro de 2015, três dias foram consagrados à obra de Lopes-Graça no ciclo “História e Viagens”, realização da Unibes Cutural e do Consulado Geral de Portugal em São Paulo. Houve a participação da mezzo-soprano portuguesa Rita Morão Tavares e do musicólogo e Professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso.

No programa, teremos, na primeira parte, o Epitáfio para o Autor do tríptico Três Epitáfios, compostos em 1930, quando Lopes-Graça tinha apenas 24 anos. Das nove Músicas Fúnebres (1981-1991), contraponto às 23 Músicas Festivas, apresentarei duas, a finalizar a primeira parte com uma obra prima do compositor, Canto de Amor e de Morte (1961), criação que, ao ver de Jorge Peixinho e Mário Vieira de Carvalho, constitui uma cumeeira em toda a produção portuguesa. Já me referi, em blogs anteriores, à atração de Graça pelo tema morte, não em uma visão prosaica e natural, mas sob a égide da transcendentalidade, mormente em Canto

Clique para ouvir (Google Chrome ou Internet Explorer), com José Eduardo Martins, as seguintes gravações de Viagens na Minha Terra, de Fernando Lopes-Graça:

Na segunda parte apresentarei obras que evocam uma das tendências mais expressivas de Lopes-Graça, o afeto que perdurou durante toda existência pelo povo mais simples, pelas freguesias, vilarejos e vilas. Seria o contato permanente com a gente dessas localidades uma de suas temáticas primordiais. Escolhi quatro segmentos, que integram a coletânea Música de Piano para Crianças e que especificam destinações, e as célebres 19 peças que constituem Viagens na Minha Terra, obra que finalizará o recital.

Interpretar Lopes-Graça não é apenas apresentar repertório a mais. Representa cultuar um dos grandes compositores da segunda metade do século XX, praticamente ignoto em nosso país, herdeiro de tantas tradições portuguesas. Oxalá mentes se abram…

On my forthcoming recital in São Paulo next January 30, entirely dedicated to works of Lopes-Graça, the greatest composer of the twentieth century in Portugal, virtually unknown in Brazil, heir to so many Portuguese traditions. Let us hope music societies open to the urgent need to introduce audiences to new repertoire pieces ─ among them a lot of excellent music composed in Portugal from the Baroque to the present ─ instead of sticking to a narrow stream of standard works from the past.