O autor se pronuncia após resenha
Le premier qui dit la vérité doit être exécuté.
Guy Béart (1930-2015)
(Canção ‘La vérité’)
Depois da minha resenha de “Bien Faire et Laisser Blaire”, de François Servenière, recebi mensagem do autor que tem muito interesse, pois algumas outras interpretações de seu livro enriquecem o conteúdo já explicitado.
Escreve Servenière:
“Qual a razão de ter apreciado a crítica que o amigo fez de meu livro em seu blog? Pelo fato de que traduz a realidade de meu texto. Sim, meu livro tem segmentos extremos, mas nossa realidade mundial, europeia e humana atual é também extrema. Busquei apenas as causas, sem preocupação em tornar a publicação uma enciclopédia ou uma tese. Tão somente uma reflexão global, que se apoia sobre o real nessa minha faixa etária após o cinquentenário.
Não se trata de uma análise dos últimos quinze dias, mas sim uma reflexão que começou a ser delineada há 15 anos, a partir de um acervo de informações e debruçamentos acumulados em 30 anos. Meu texto pode desagradar e cada um fará seu julgamento. Quando eu falo da idiotice, não tenho ilusões, pois poderei ser alvo de críticas, como todo mundo, aliás.
A sua resenha de ‘Bien Faire Laisser Braire’ (‘Fazer bem feito e deixar ladrar ou zurrar’) está universitariamente exata. Você soube extrair as paixões existentes no livro. Qual a razão de entendermos formidáveis os livros dos grandes autores do passado, Shakespeare, Voltaire, La Fontaine, Goethe, Kant, Cervantes… (lista imensa). Por uma razão apenas: eles não mentiram sobre suas épocas. São analistas lúcidos e cruéis. E Deus sabe que correram risco de morrer graças aos seus testemunhos – ‘E sei que ela gira’ (Galileu) -. A verdade contida em suas revelações nunca agradaram a monarcas e senhores feudais, às ideologias e às circunstâncias momentâneas, aos interesses e aos lobbies, friso, nunca. Nada de novo sob o sol: no Brasil e na França, ainda vivemos esse drama, malgrado a imprensa dita ‘livre’ (hum, hum)!!! Hoje, os monarcas não matam pela verdade estampada que os desagrada, mas mantêm associações e editam leis para impedir que a verdade chegue ao firmamento.
A sua crítica é formidável, pois você vê meu livro como ele é. Na forma bruta, sem concessão, no limite, sobre a corda esticada, como afirma, se comparado às novas normas do pensamento único, que encolhe o debate à velocidade da luz. Estou a me lembrar da história do repórter ou fotógrafo de guerra. O fotógrafo de guerra tira as fotos, majoritariamente horríveis: massacres, fome, execuções sumárias… Ao voltar para casa, colocas as imagens no computador sobre photoshop para os profissionais contemporâneos. Que pensaríamos nós se essas fotos fossem retocadas para serem adaptadas para o público, para o editor, etc…, pelo dinheiro tão somente? Diríamos que ele não teria feito seu trabalho. Sinto que fiz meu trabalho.
Procurei, logicamente através de meu prisma, traduzir tudo aquilo que senti e vivi desde minhas origens. Tentei destruir nessas crônicas tudo que pudesse – programações mentais de educação e do meio social de origem cristã, da direita e da esquerda de um cristianismo por vezes comunista, rural, comercial, artístico, universitário e também voltado à medicina – alterar a crua visão da verdade e a leitura de nossa conjuntura. Reli o texto ao menos 300 vezes. Consegui, a partir de uma análise de vários anos, liberta-me daquilo que pudesse sugerir a subjetividade em detrimento do essencial, a resultar portanto a transparência da objetividade. Daí ter inserido cifras, fatos e consequências múltiplas em tantas áreas (capítulos X, XI, XV, XX). Busquei sempre colocar-me na posição de um extraterrestre que, ao chegar à Terra, descobrisse a civilização humana, a criticá-la sem piedade nem afeto, sem conluio de qualquer espécie e respeito pelas suscetibilidades individuais e coletivas. Quis sempre guardar esse olhar e afrontar o horror, mesmo que essa atitude pudesse desagradar minha genealogia, meus antepassados, pois não deixo de ser devedor de toda a herança que me legaram, sob múltiplas formas. Procurei ver sob essa casca humana protetora que constitui a cultura, o bom, o belo, o justo, deixando de lado toda programação geográfica e histórica. Eis o meu propósito, pois.
Muitas vezes ou sempre, pelo menos assim deveria ser, a bondade se encontra no de profundis de cada um de nós. Vê-se que estamos diante de uma busca incessante sem fronteiras. Meu livro, na realidade, está sempre a transmitir essas ideias. Abandonai vossas barreiras mentais! Guardai vossas fronteiras e vossas leis para proteger vosso microcosmos como se protege um jardim, que nada mais é do que fruto de um trabalho. Todavia, abri vossos corações à alteridade, viajai! Era um pouco a filosofia do grande Maurice Ravel: “Sou um internacionalista por filosofia, mas nacionalista em arte”.
A realidade que escrevo, vivia-a, mensurei-a, tive pesadelos e noites brancas para chegar a esses mecanismos. Por vezes relâmpagos de lucidez surgiam-me em plena noite, nada de excepcional, aliás, pois ocorre a todo pensador ao refletir sobre seu mundo, sem cessar. Adquiri o hábito há anos de ter meu laptop ao lado de minha cama para apreender ao vivo a reflexão. A construção do livro foi fruto de dezenas de horas de debruçamento, a fim de compreender um mecanismo ou outro, em todos os domínios de minhas fronteiras mentais: filosofia, música, barco, navegação, montanha, ciência, etc… Como na música, foi necessário, sobretudo, não perder o fio condutor da construção mental. Criadores, autores, artistas e tantos outros, que têm a mente em ebulição, conhecem esse fulgor. Pode ocorrer no carro, sob uma ducha, correndo, sobre uma bike elíptica, no sonho, ou, in extremis, na conjunção de tantos fatores. Um espírito em vigília, um espírito que trabalha, fá-lo do primeiro ao último dia, sem cessar… A fadiga nessa busca permanente percebe-se no olhar, nos traços. O repouso basicamente não existe.
Agradeço-lhe pela crítica, longa, pensada, sem derivativos, a afrontar e a descrever meu texto na sua mais profunda autenticidade. Já previa que determinadas passagens pudessem desagradá-lo, você, cristão e humanista. Sabia contudo de sua abertura intelectual maior. Soube você extrair de seu paradigma mental razões para resenhar meu livro em seu aspecto real. Você fala das polêmicas! Bem entendido, tudo é polêmico, do grego antigo πόλεμος, pólemos (guerra). Estamos em guerra contra o obscurantismo e o totalitarismo. E, como descrevi, essa guerra é multiforme, multipolar, a encontrar sua essência nos mesmos erros e nas ideologias que quiseram pela força criar o ‘novo homem’ ou ‘nova humanidade’, os socialismo, comunismo, nacional-socialismo, islam e uma parte das tradições talmúdicas e bíblicas que não foram verdadeiramente pensamentos humanistas na origem. O fundamentalismo e seus efeitos monstruosos têm origem nesses textos. É fato e de fácil comprovação. A guerra evidentemente, contra a civilização no sentido da civilidade. Não entre as civilizações. Guerra entre bárbaros e os civilizados. É tudo.
Nós dois almejamos um só caminho, o da verdade, e ela faz mal. Não seguimos a verdade conjuntural, geográfica ou cultural, religiosa ou doutrinária, mas a verdade humana naquilo que ela tem de mais ontológico, aquela que emana das profundidades do DNA. E a música, nesse sentido amplo, não pode mentir. Ela está fora do campo ideológico, pois a música é ‘DNAdística’, mediúnica. Aqueles que pretenderam colocá-la no campo ideológico no século XX deram-se mal. Recebem no rosto o boomerang (analogia política/música).
Enfim, ontologicamente, essencialmente: por que, qual a razão de aqui estarmos, para qual propósito? Kant, Spinoza, Shakespeare, a Bíblia, o Torá, o Talmud… certamente propõem as chaves. Qual a razão para agirmos assim? Por que fazemos a guerra e a paz e, após 30 anos, refazermos ainda conflitos exterminadores, sempre invocando razões bem próximas, como exponho no subtítulo de meu livro ‘Crônica da água que corre sob as pontes sem jamais retornar acima, exceção graças à evaporação’ (a vida é um ciclo)? Sempre, sempre, malgrado a relatividade de Einstein, as mesmas causas produzem desgraçadamente os mesmos efeitos. O século XX sofreu com a sua descoberta e com sua consequência filosófica, o relativismo. Tudo passaria doravante a ser relativo e nada mais teria o valor real, diria, batalha de cínicos! Tentei provar que todas essas controvérsias eram falsas, apesar da justeza teórica sobre pontos precisos. Vivemos, mesmo que seja em forma de ondas ou de influências macro/microscópicas ou nanoscópicas, realidades. Os músicos integram essa certeza desde o nascimento da música” (tradução: JEM).
Servenière finaliza a enviar-me inúmeros aforismos pertinentes à desavença, à guerra, à discórdia, à leitura preconceituosa. Mencionaria o primeiro, bem apropriado ao conteúdo de seu livro e determinadas interpretações que dele deverão advir: “Quando o sábio aponta para a lua, o idiota olha seu dedo” (provérbio chinês).
In last week’s post I published an appreciation of François Servenière’s book “Bien Faire et Laisser Blaire”. Today I publish the author’s comments on my review, suggesting other interpretations that only enrich the understanding of his book.
Comentários