A morte de um jovem músico e a avaliação póstera


Fragoso,
alma subtil,
cedo desasada,
faz parte do coro de anjos.
Eurico Carrapatoso

Neste segundo post sobre o compositor português António Fragoso (1897-1918) abordaremos a avaliação que habitualmente é feita à obra criada na juventude, nas mais variadas áreas da Cultura, mormente quando abortada precocemente.

Admirador do pequeno e qualitativo legado deixado por Antônio Fragoso, intriga-me a avaliação da breve opera omnia, escrita na juventude por um criador de grande talento, que é abruptamente ceifado pelo infortúnio. Considerando-se alguns poetas brasileiros de inegáveis qualidades, como Castro Alves (1847-1871), Casimiro de Abreu (1839-1960), Álvares de Azevedo (1831-1952), Augusto dos Anjos (1884-1914) e outros mais, assim como o compositor brasileiro – nascido na Itália – Glauco Velásquez (1884-1914) e o também compositor belga Guillaume Lekeu (1870-1894), verifica-se que há sempre a perspectiva da projeção, de um vir a ser imaginário. Ambos os músicos deixaram criações de alto nível que integram repertórios, sendo que a Sonata para violino e piano em Sol Maior de Lekeu (1891-1893), dedicada ao grande violinista Eugène Isaye – que fez sua estreia -, é uma das mais importantes obras do gênero da segunda metade do século XIX.

Numa outra categoria, há aquele que simplesmente “morre” para a atividade que o consagraria e as décadas vindouras dar-lhe-ão a aura da imortalidade. Arthur Rimbaud (1854-1991) encerra sua criação poética em 1875, aos 21 anos de idade, e sua vida após essa data estará marcada por incontáveis aventuras e desacertos, que o levariam a inúmeros países da Europa, África e Ásia.

Se figuras como Mozart (1756-1991) e Schubert (1797-1828) excedem nas criações até os 21 anos, num outro patamar surpreende a precocidade vocacional de António Fragoso. Considerando-se Beethoven (1770-1827), a precocidade teria sido menos favorável: os três Trios op. 1 foram escritos em 1795 e suas primeiras Sonatas para piano datam do mesmo ano. Debussy (1862-1918) terá, como obras juvenis que perduraram pela qualidade, principalmente as inúmeras melodias que compõe, já a saber escolher poetas que também permaneceriam, como Paul Verlaine, Théophile Gautier, Leconte de Lisle, Théodore de Banville, Paul Bourget…

Os exemplos mencionados, entre incontáveis outros, servem apenas como amostras para a avaliação póstera. Se considerarmos que Jean-Philippe Rameau (1683-1764) compõe aos 21 anos a sua primeira Suíte em lá menor para cravo, que surpreende com um Prélude absolutamente inovador para o período (1706), vindo a escrever sua última ópera – Les Boréades - aos 80 anos, a menção da Suíte em questão “teria” menor interesse para os intérpretes e estudiosos do que aquelas compostas em 1724 e 1731. É humana a tendência de não se valorizar determinadas criações da juventude, quando as que se sucedem trazem contributos inquestionáveis quanto à estrutura, à forma e aos conceitos de um autor que permanecerá na história.

Seria possível entender que a morte, advinda no tempo em que a criação musical começa a se expandir de maneira plena, estimule até uma “benevolência” póstera com o multum in minimo deixado por um compositor. Sob outra égide, a qualidade é a salvaguarda da perenidade. Vocações ceifadas precocemente, como as de António Fragoso, Glauco Velásques e Guillaume Lekeu, continuarão a despertar interesse. No estudo Luís de Freitas Branco e António Fragoso: análise comparada de obras para piano (“António Fragoso e o seu tempo”, Direcção de Paulo Ferreira de Castro, Lisboa, CESEM, 2010), a pianista Ana Telles traça criteriosa comparação entre obras para piano de António Fragoso e de seu mestre, Luís de Freitas Branco (1890-1955), com apenas alguns anos a mais. Este acreditava firmemente nos dons musicais do jovem discípulo. Uma visão de “futurologia do passado” poderia antever uma evolução de Fragoso em direcionamento bem inovador. As criações do infortunado jovem apresentam claramente o caminhar seguro.

Se a preferência ao que vem de França é sensível em algumas de suas composições, não se descarte – o que evidencia uma cultura invulgar do jovem Fragoso – uma preocupação com o nacional. Na mesma publicação, José Maria Pedrosa Cardoso, em seu precioso artigo, António Fragoso e a música portuguesa, observa: “Na realidade, António Fragoso, distinguindo uma música nacional baseada em temas populares e uma música nacional original, antecipou de algum modo a postura de Fernando Lopes-Graça sobre a matéria, ao expor reiteradamente um nacionalismo de raiz folclórica e um nacionalismo étnico-cultural”. O prolongamento da existência teria forçosamente libertado Fragoso das amarras a que fatalmente todo compositor de mérito se submeteu durante arroubos juvenis num fervilhar criativo. Só após a arrebentação chega-se ao mar aberto e o criador passa a encontrar seu estilo num longo processo de decantação.

Louve-se o empenho em Portugal em divulgar, editar e gravar a obra de António Fragoso. Os centenários de morte de um mestre accompli, Claude Debussy, e de uma promessa-realidade, que foi abortada pela fatal gripe pneumónica de 2018, estimulam as mentes.

Que perdure a sua obra precocemente afirmada, se estimule a divulgação da sua música e do seu nome e se reconheça em Portugal e no mundo o talento do jovem que a morte ceifou na mesma onda que arrastou outro músico notável que foi David de Souza (1880-1918) e um enorme pintor, igualmente jovem, que foi Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918).

The second post about António Fragoso discusses how untimely death can be an essential factor in evaluating the production an artist leaves behind. Could the legacy of those who died young win the benevolence of critics? On the other hand, isn’t it true that those who have lived long enough to establish a style of their own may have their juvenile works neglected? The reason why António Fragoso’s output — at a time when his style definition was still unclear — continues to be studied and praised is due to one reason only: his immense talent, as shown by the soundness of his musical writing and the intellectual curiosity that surfaces in his many letters.