Um pianista não reverenciado à altura

Egon Petri não foi apenas um grande pianista,
mas um dos maiores de seu tempo.
Rudolf Firkusný (1912-1994)

Regina e eu colocávamos em ordem documentos  relacionados à sua atividade musical quando nos deparamos com um autógrafo do grande pianista Egon Petri, infelizmente não cultuado à altura. Em 1953, aos 12 anos de idade, Regina participou do “First Annual Junior Bach Festival” em Berkeley, na Califórnia, apresentando recital. Dias após, na Mills College em Oakland, também na  Califórnia, Regina participaria de masterclass oferecida por Egon Petri. Indeléveis lembranças ficariam retidas, motivo justíssimo para inserir, na lista dos mestres maiores do piano de antanho, Egon Petri.

Filho de alemães, nasceu em Hanover, mas logo a família mudar-se-ia para Dresden. Seu pai foi violinista renomado que estudou com o célebre Joseph Joachim, tendo integrado, como spalla, orquestras maiores, como a Gewandhaus e a de Leipzig. Egon Petri estudaria com músicos insofismáveis: Teresa Carreño (1853-1917) e Ferrucio Busoni (1866-1924). Com o mestre italiano apresentar-se-ia em Londres (1921) e colaboraria com Busoni na edição de obras de J.S.Bach. Egon Petri foi seu mais importante aluno. Daria recitais pela Europa e pela Rússia. Seria a partir de 1929 que Egon Petri mais efetivamente se dedicaria também às gravações.

A partir de 1906 seria reconhecido igualmente como professor de mérito, tendo lecionado em importantes instituições na Inglaterra, Alemanha e Polônia. Um dia antes da invasão das tropas nazistas a este último país refugia-se na Inglaterra. Durante o resto da existência, nunca mais tocou ou visitou a Alemanha.

Ao emigrar para os Estados Unidos, lecionaria em prestigiadas instituições de ensino musical, entre as quais destaca-se a prolongada ligação com o Mills College em Oakland, na Califórnia (1947-1957). Entre seus alunos mais proeminentes, salientem-se John Ogdon e Earl Wild.

Egon Petri possuía um repertório imenso e a influência de Busoni na escolha de determinados autores é evidente. Intérprete singular de muitas criações de Liszt, unia o notável esmero técnico-pianístico que lhe era peculiar à visão integral da partitura. Há em suas execuções das mais virtuosísticas obras uma nítida sobriedade, que não exclui a fantasia. O recato no seu cotidiano e as reservas quanto à celebridade são traduzidos em suas interpretações impecáveis, sem arroubos exagerados. São modelos para os pósteros.

Quanto às transcrições, como aluno preferencial de Ferrucio Busoni, Petri altera por vezes obras desse gênero. Vale a pena considerar que uma obra original não deve ser alterada arbitrariamente pelo intérprete. Trata-se até de um posicionamento moral frente à criação. Todavia, a transcrição que “oficialmente” poderia até ser entendida como uma transgressão, mas que na verdade é uma ampliação ou não de obra já criada, permite alterações por parte do intérprete. Benno Moiseiewitsch, György Cziffra, Vladimir Horowitz, entre outros, assim o fazem em tantas transcrições, e Egon Petri insere-se nesse grupo de exímios, mormente em determinadas passagens ou na duplicação das fundamentais.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, de Bach-Busoni, Toccata, Adagio e Fuga (gravação 1958):

https://www.youtube.com/watch?v=EQlaFq6uKNE

Todos os grandes pianistas do passado reverenciados neste espaço eram possuidores de qualidades inalienáveis e tantas das obras do repertório tradicional receberam leituras por vezes bem diversas, mas o fio condutor da tradição, mesmo que “ondulante”, esteve quase sempre presente em sua integridade.

Têm interesse frases de Egon Petri publicadas por Michaeli Benedict, que estudou com Robert Sheldon, que por sua vez foi orientado por Egon Petri, tendo recolhido alguns dos pensamentos do mestre destinados aos pianistas:

“Conheço todas as regras, mas, se elas não se encaixam, eu as quebro ao invés de quebrar a música.

Chame a sua atenção para a vibração das cordas e não para a batida do martelo sobre elas.

As pessoas estão mais interessadas no início dos sons e não na sua continuação.

Nunca tente obter mais volume batendo sobre as teclas.

Numa execução em baixa intensidade, quanto mais firmes estiverem as mãos, mais controle se tem.

O mais importante é o que acontece no fim das pontas dos dedos.

Tem-se que acomodar as coisas na mente até que se tornem automáticas.

Não tente em vão superar as dificuldades, mas encontre outra abordagem para superá-las.

Ao tocar pense sempre em curvas: sem ângulos, sem paragens.

Este é um princípio de vida: A calma é baseada na confiança.

Pedal: Um instrumento muito bonito, mas perigoso.

Rubato é como um homem a passear o seu cão. Por vezes o cão está à frente, outras vezes atrás, mas ambos vão e voltam juntos, (meu saudoso professor José Kliass – 1895-1970 – comparava o rubato ao cambalear de um bêbado, ele dá passos rápidos para um lado, equilibra-se e retorna ao ponto inicial).

O medidor é algo inventado pelo homem, como o metrônomo, o relógio, etc…

A frase na música é como falar ou ler, pois observa-se a pontuação; a dinâmica é como a inflexão da voz. Não se deve exagerar.

Estou aqui para defender o compositor.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, de Liszt-Busoni, Valsa Mefisto: Considere-se que, nas primeiras décadas do século XX, as gravações eram precárias sob a ótica atual, e assim mesmo podemos ouvir as interpretações singulares de Egon Petri em 1929. Os sons sempre são interrompidos abruptamente ao final das peças, não havendo a reverberação tão necessária, maior presentemente quando realizada em teatros ou templos com acústica impecável:

https://www.youtube.com/watch?v=2a5RS0NBI4U

Reitero que os grandes intérpretes do passado deveriam ser mais cultuados. Partir-se de uma estação ferroviária pressupõe o conhecimento do roteiro anterior, pois é possível que se percam as referências do todo. Na fronteira dos 83 anos, mais acentuadamente verifico que, nesta civilização do espetáculo, mesmo que extraordinários pianistas surjam sob o aspecto técnico-pianístico, mais claramente apreendo que câmaras e holofotes têm provocado nos executantes gestuais histriônicos e procedimentos interpretativos duvidosos. Ouvir o passado é fonte segura, que deveria ser mantida com desvelo.

Recentemente foi publicado livro de Alfred Kanwischer “Egon Petri – Musician to the world” (Cuvillier, 2019). O autor recupera entrevistas que manteve com Petri entre 1960 e 1962. Merece leitura.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, as seguintes obras: Paganini-Liszt, Estudo nº 5; Liszt, Dança dos anões; Wagner-Liszt, O holandês voador; Schubert-Liszt, A trutaPara ser cantado na água (gravação 1929).

https://www.youtube.com/watch?v=0ikiYdM29eE

Estava em supermercado quando encontro com Marcelo. Questionador, pergunta-me: “de todos esses pianistas, qual o melhor?”. Respondo-lhe que um juízo de valor é perigoso. Todos os que desfilaram em posts, que datam de Março de 2007, tiveram qualidades insofismáveis. Sob outra égide, nem sempre um pianista é suficientemente especializado em determinado compositor, sendo contudo extraordinário ao executar tantos outros autores. Melhor, todos eles têm méritos que os fizeram reverenciados por aqueles que apreciam as grandes interpretações, apesar da mutação do espetáculo na atualidade.

Egon Petri was one of the greatest names of the piano in the 20th century. The best pupil of Ferrucio Busoni, he collaborated with him on editions of J.S.Bach. Petri became a respected model of tradition, leaving a legacy through his recordings, not forgetting to mention his teaching activity in several music education centers, mainly in the United States.