Navegando Posts publicados em maio, 2021

Um pianista não reverenciado à altura

Egon Petri não foi apenas um grande pianista,
mas um dos maiores de seu tempo.
Rudolf Firkusný (1912-1994)

Regina e eu colocávamos em ordem documentos  relacionados à sua atividade musical quando nos deparamos com um autógrafo do grande pianista Egon Petri, infelizmente não cultuado à altura. Em 1953, aos 12 anos de idade, Regina participou do “First Annual Junior Bach Festival” em Berkeley, na Califórnia, apresentando recital. Dias após, na Mills College em Oakland, também na  Califórnia, Regina participaria de masterclass oferecida por Egon Petri. Indeléveis lembranças ficariam retidas, motivo justíssimo para inserir, na lista dos mestres maiores do piano de antanho, Egon Petri.

Filho de alemães, nasceu em Hanover, mas logo a família mudar-se-ia para Dresden. Seu pai foi violinista renomado que estudou com o célebre Joseph Joachim, tendo integrado, como spalla, orquestras maiores, como a Gewandhaus e a de Leipzig. Egon Petri estudaria com músicos insofismáveis: Teresa Carreño (1853-1917) e Ferrucio Busoni (1866-1924). Com o mestre italiano apresentar-se-ia em Londres (1921) e colaboraria com Busoni na edição de obras de J.S.Bach. Egon Petri foi seu mais importante aluno. Daria recitais pela Europa e pela Rússia. Seria a partir de 1929 que Egon Petri mais efetivamente se dedicaria também às gravações.

A partir de 1906 seria reconhecido igualmente como professor de mérito, tendo lecionado em importantes instituições na Inglaterra, Alemanha e Polônia. Um dia antes da invasão das tropas nazistas a este último país refugia-se na Inglaterra. Durante o resto da existência, nunca mais tocou ou visitou a Alemanha.

Ao emigrar para os Estados Unidos, lecionaria em prestigiadas instituições de ensino musical, entre as quais destaca-se a prolongada ligação com o Mills College em Oakland, na Califórnia (1947-1957). Entre seus alunos mais proeminentes, salientem-se John Ogdon e Earl Wild.

Egon Petri possuía um repertório imenso e a influência de Busoni na escolha de determinados autores é evidente. Intérprete singular de muitas criações de Liszt, unia o notável esmero técnico-pianístico que lhe era peculiar à visão integral da partitura. Há em suas execuções das mais virtuosísticas obras uma nítida sobriedade, que não exclui a fantasia. O recato no seu cotidiano e as reservas quanto à celebridade são traduzidos em suas interpretações impecáveis, sem arroubos exagerados. São modelos para os pósteros.

Quanto às transcrições, como aluno preferencial de Ferrucio Busoni, Petri altera por vezes obras desse gênero. Vale a pena considerar que uma obra original não deve ser alterada arbitrariamente pelo intérprete. Trata-se até de um posicionamento moral frente à criação. Todavia, a transcrição que “oficialmente” poderia até ser entendida como uma transgressão, mas que na verdade é uma ampliação ou não de obra já criada, permite alterações por parte do intérprete. Benno Moiseiewitsch, György Cziffra, Vladimir Horowitz, entre outros, assim o fazem em tantas transcrições, e Egon Petri insere-se nesse grupo de exímios, mormente em determinadas passagens ou na duplicação das fundamentais.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, de Bach-Busoni, Toccata, Adagio e Fuga (gravação 1958):

https://www.youtube.com/watch?v=EQlaFq6uKNE

Todos os grandes pianistas do passado reverenciados neste espaço eram possuidores de qualidades inalienáveis e tantas das obras do repertório tradicional receberam leituras por vezes bem diversas, mas o fio condutor da tradição, mesmo que “ondulante”, esteve quase sempre presente em sua integridade.

Têm interesse frases de Egon Petri publicadas por Michaeli Benedict, que estudou com Robert Sheldon, que por sua vez foi orientado por Egon Petri, tendo recolhido alguns dos pensamentos do mestre destinados aos pianistas:

“Conheço todas as regras, mas, se elas não se encaixam, eu as quebro ao invés de quebrar a música.

Chame a sua atenção para a vibração das cordas e não para a batida do martelo sobre elas.

As pessoas estão mais interessadas no início dos sons e não na sua continuação.

Nunca tente obter mais volume batendo sobre as teclas.

Numa execução em baixa intensidade, quanto mais firmes estiverem as mãos, mais controle se tem.

O mais importante é o que acontece no fim das pontas dos dedos.

Tem-se que acomodar as coisas na mente até que se tornem automáticas.

Não tente em vão superar as dificuldades, mas encontre outra abordagem para superá-las.

Ao tocar pense sempre em curvas: sem ângulos, sem paragens.

Este é um princípio de vida: A calma é baseada na confiança.

Pedal: Um instrumento muito bonito, mas perigoso.

Rubato é como um homem a passear o seu cão. Por vezes o cão está à frente, outras vezes atrás, mas ambos vão e voltam juntos, (meu saudoso professor José Kliass – 1895-1970 – comparava o rubato ao cambalear de um bêbado, ele dá passos rápidos para um lado, equilibra-se e retorna ao ponto inicial).

O medidor é algo inventado pelo homem, como o metrônomo, o relógio, etc…

A frase na música é como falar ou ler, pois observa-se a pontuação; a dinâmica é como a inflexão da voz. Não se deve exagerar.

Estou aqui para defender o compositor.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, de Liszt-Busoni, Valsa Mefisto: Considere-se que, nas primeiras décadas do século XX, as gravações eram precárias sob a ótica atual, e assim mesmo podemos ouvir as interpretações singulares de Egon Petri em 1929. Os sons sempre são interrompidos abruptamente ao final das peças, não havendo a reverberação tão necessária, maior presentemente quando realizada em teatros ou templos com acústica impecável:

https://www.youtube.com/watch?v=2a5RS0NBI4U

Reitero que os grandes intérpretes do passado deveriam ser mais cultuados. Partir-se de uma estação ferroviária pressupõe o conhecimento do roteiro anterior, pois é possível que se percam as referências do todo. Na fronteira dos 83 anos, mais acentuadamente verifico que, nesta civilização do espetáculo, mesmo que extraordinários pianistas surjam sob o aspecto técnico-pianístico, mais claramente apreendo que câmaras e holofotes têm provocado nos executantes gestuais histriônicos e procedimentos interpretativos duvidosos. Ouvir o passado é fonte segura, que deveria ser mantida com desvelo.

Recentemente foi publicado livro de Alfred Kanwischer “Egon Petri – Musician to the world” (Cuvillier, 2019). O autor recupera entrevistas que manteve com Petri entre 1960 e 1962. Merece leitura.

Clique para ouvir, na interpretação de Egon Petri, as seguintes obras: Paganini-Liszt, Estudo nº 5; Liszt, Dança dos anões; Wagner-Liszt, O holandês voador; Schubert-Liszt, A trutaPara ser cantado na água (gravação 1929).

https://www.youtube.com/watch?v=0ikiYdM29eE

Estava em supermercado quando encontro com Marcelo. Questionador, pergunta-me: “de todos esses pianistas, qual o melhor?”. Respondo-lhe que um juízo de valor é perigoso. Todos os que desfilaram em posts, que datam de Março de 2007, tiveram qualidades insofismáveis. Sob outra égide, nem sempre um pianista é suficientemente especializado em determinado compositor, sendo contudo extraordinário ao executar tantos outros autores. Melhor, todos eles têm méritos que os fizeram reverenciados por aqueles que apreciam as grandes interpretações, apesar da mutação do espetáculo na atualidade.

Egon Petri was one of the greatest names of the piano in the 20th century. The best pupil of Ferrucio Busoni, he collaborated with him on editions of J.S.Bach. Petri became a respected model of tradition, leaving a legacy through his recordings, not forgetting to mention his teaching activity in several music education centers, mainly in the United States.

 

 

 

 

 

 

 

200 casos verídicos narrados por Jorge de Souza

Mar!
E quando terá fim o sofrimento!
E quando deixará de navegar
Sobre as ondas azuis o nosso pensamento!
Miguel Torga
(“História Trágico-Marítima” – Alguns Poemas Ibéricos, 1952)

Na adolescência fascinavam-me os livros de biografias e as aventuras reais. Meu saudoso pai incentivava as histórias de figuras que permaneceram na história, pois as entendia como exemplos norteadores. As epopeias e grandes aventuras pouco a pouco também preenchiam minhas estantes. Marcas indeléveis permaneceram. Nos blogs, que remontam a Março de 2007, há inúmeros livros que, após leitura, resenhava ou comentava, mormente os relativos à cadeia de montanhas do Himalaia e seu pico maior, o Everest. Com a “vulgarização” das subidas ao pico, movidas por organizações especializadas nesse mister, centenas de “curiosos” sobem anualmente e não poucos sucumbem. Perdeu-se a magia, profanaram a Deusa Mãe do Céu Sagarmatha, segundo os nepaleses, desvirtuaram o alpinismo, hoje, de turismo. Apesar dessa realidade, ainda me entusiasma a leitura dos acessos ao K2, duzentos e pouco metros menos elevado, muito mais perigoso e, por não ser o maior, pouco visitado.

Nesses últimos dez anos entusiasmaram-me as aventuras do extraordinário aventureiro francês Sylvain Tesson e resenhei mais de dez livros (vide Resenhas e Comentários no menu) em que o autor descreve com agudeza suas andanças pelo planeta, quase sempre solitário.

Nessa interminável pandemia, li em um dos portais instigante artigo sobre um navegador que, em barco pequeno, realizou a circum-navegação do planeta sem parar em terra alguma. Ao fim da matéria havia publicidade de um livro: “Histórias do Mar – 200 casos verídicos” (São Paulo, Agência 2, 4ª edição, 2020). Interessei-me e adquiri-o via internet. A conta-gotas fui lendo as duas centenas de aventuras que se estendem do início do século XVI à atualidade. O autor, jornalista Jorge de Souza, é especialista em fatos, aventuras e histórias ligadas ao mar. Criou revistas afins e tem atuação permanente na mídia.

O notável navegador Amyr Klinck opina sobre o “Histórias do Mar”: “Sensacional! Livro viciante, daqueles que a gente não consegue parar de ler”.

Rigorosamente leigo na matéria, só entrei em um barco pequeno, o famoso pô-pô-pô – denominação simpática devido ao barulho do seu motor -, abundante nas águas do rio Guamá, para uma travessia de Belém à ilha do Cumbu. Comungo a opinião do pianista René François Duchâble (vide blog: “René François Duchâble”, 30/01/2021), que tem medo de viajar de navio e que jamais o fez. Esse é meu temor também, mas o fato não invalida assistir a documentários sobre barcos pesqueiros no mar do norte, ou aventuras marítimas pungentes. Recordo-me das duas leituras, uma na juventude e outra faz alguns anos, de “A expedição Kon-Tiki” (vide blog: 29/09/2018).

Amyr Klinck, tantas vezes navegante solitário, tem toda a razão sobre o livro. Centrei-me em poucas histórias diariamente, mas a vontade era prosseguir.

Jorge de Souza é um expert na temática “mar” sob os mais variados aspectos. Historicamente narra desde aventuras, naufrágios, pirataria e aspirações que remontam aos primórdios do século XVI. Torna-se evidente que a documentação desse período e os subsequentes é bem mais escassa, mas o autor, com perspicácia, consegue imprimir “atualização” a essas aventuras marítimas de antanho.

À medida que nos aproximamos do século XX e que a navegação se torna bem mais intensa, relatos ganham configuração mais abrangente, a não ser quando há misteriosos desaparecimentos de comandantes e seus adjuntos no mar, mas não das embarcações. Não são poucas essas narrativas. Pirataria em alto mar, revolta de tripulações que, após eliminarem comandantes e ajudantes, evadiram-se em barcos salva-vidas e igualmente deles não restariam traços. Jorge de Souza sempre enfatiza essas situações. Navios fantasmas.

Não há como pontuar algumas das 200 histórias, tantas trágicas, outras dramáticas e algumas hilárias. O texto de Jorge de Souza tem teor jornalístico, é leve, agradável, sem quaisquer requintes literários mais sofisticados. Talvez seja essa apreensão, independentemente de algumas histórias mais longas e elaboradas, que tornam a leitura tão agradável. Se não aborda o Titanic (mais de 1.500 vítimas), pois já se tornou um enfado retornar ao tema, creio que um pormenorizar maior sobre a tragédia marítima que atingiu 9.300 pessoas e que, no livro, tem como título “O triste fim do Titanic de Hitler”, enfatizaria ainda mais a insanidade das guerras, quando o transatlântico alemão Wilhelm Gustloff foi torpedeado por submarino russo em 30 de Janeiro de 1945, nos estertores da IIª Grande Guerra. O Titanic, cercado de glamour e aura de navio perfeito, foi a pique ao chocar-se com um iceberg; quanto ao segundo, superlotado por civis alemães em fuga e soldados feridos do regime nazista, dos certamente mais de 10.500 “passageiros” apenas 1.239 sobreviveram.

Um sobrevivente dirá décadas após: “os mortos estão tranquilos, mas nós, sobreviventes, morremos a cada dia”. Pungente documentário traduz a maior tragédia marítima em termos de vidas perdidas:

https://www.plongee-infos.com/chaque-jour-une-epave-30-janvier-1945-le-wilhelm-gustloff-la-plus-grande-tragedie-maritime-de-tous-les-temps/

A contrastar com essa magnitude, em “Histórias do Mar” Jorge de Souza conta casos até bizarros de viajantes solitários que, atingindo ou não seus objetivos, arriscaram-se pelos mais variados motivos: aventura, fuga, diversão, notoriedade, furto. Alguns se deram muito mal e levaram seus sonhos para o fundo do mar. Impressionam determinados casos de aventureiros que contam unicamente com o alimento extraído do mar — peixes, tartarugas — e do espaço, quando aves migratórias ou distantes de terra firme encontram um lugar para descansar. Nas “histórias” de Jorge de Souza sobre esses navegadores solitários o que não falta é a diversidade de condutas.

Jorge de Souza alerta sobre o descaso das autoridades que permitem que barcos superlotados de turismo ou de viajantes naveguem pelas águas brasileiras. Menciona a tragédia “do barco Novo Amapá na foz do rio Amazonas, onde morreram mais de 250 dos 600 passageiros – embora ele só tivesse capacidade oficial para 150 pessoas”. Oito meses após seria o Sobral Santos II, característica gaiola amazônica (Setembro, 1981), igualmente naufragando por falta de fiscalização, superlotado, a deixar dezenas de desaparecidos. O autor insere no livro a tragédia do  Bateau Mouche, também superlotado, que naufragaria na noite de 31 de Dezembro de 1988 na saída da Baia de Guanabara. Não há necessidade de profetizar, mas por desleixo na fiscalização tantas outras tragédias como essas serão tratadas pelo autor futuramente, hélas.

Pela abrangência, tem interesse especial o relato sobre o submarino alemão U-507, que, durante a IIª Grande Guerra, com seus torpedos afundou vários navios brasileiros em 1942. Comenta: “Foi ele, também, que decretou o trágico destino de mais de 600 brasileiros, muitos deles mulheres e crianças, ao torpedear navios de passageiros sem nenhum aviso. Foi Harro Schacht (comandante), enfim, que fez o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial, após a nação, indignada, romper sua neutralidade”. Meses após, em 1943, o submarino voltaria aos mares do sul e encontraria seu fim causado por bombas de profundidade lançadas por um avião Catalina, que escoltava comboio de navios.

Creio que o leitor poderá se interessar pelas narrativas que, por vezes, em casos específicos, são abordados por Jorge de Souza com fino humor ou ironia.

Ficaria apenas uma observação, resultado de meu desconhecimento de outras obras de sucesso do autor. Gostaria que houvesse sido inserida a extraordinária façanha de Ernest Henry Shackleton, que, na expedição à Antártida (1914-15), assistiu ao esmagamento pelo gelo de seu navio Endurance, mas que, após verdadeira epopeia, salvaria a tripulação.

Since my youth I have enjoyed books based on true adventures. Many have already been mentioned in this blog, like the ones about the Himalayan mountain range or the many books by the French adventurer Sylvain Tesson. “Histórias do Mar” (Sea Stories), written by Jorge de Souza, a journalist and editor specializing in facts occurring at sea, is a book of great interest and worth of attention. A real page turner, from beginning to end a compelling read.